PARADOXO
O título do caderno especial do “Estado” de que nos servimos na parte 1 é “Um sonho completa 70 anos”. O tom laudatório se explica por dois motivos. Primeiro, pelo fato de que o jornal se dirige a um público elitizado e conservador, para quem evidentemente a Universidade deu certo. Seu público são os membros do extrato social de onde saem os uspianos típicos. Do seu ponto de vista, a USP deve mesmo ser um sonho. Segundo, pelo fato de que um dos articuladores políticos da criação da USP, Júlio de Mesquita Filho, é membro da família proprietária do jornal e foi seu diretor de 1927 a 1969. A USP é uma cria do Estadão. Pelo menos, resultado do empenho pessoal de seu proprietário. O qual seria mais tarde homenageado ao emprestar seu nome para batizar a Unesp.
Pelo motivo inverso, o título do caderno da “Folha” é “Uma Universidade na Encruzilhada.” Grosso modo, a ênfase da história contada pelo Estadão está na importância e no peso histórico das realizações da USP, mais do que nos seus percalços e dificuldades, passadas e presentes. A ênfase da “Folha” está justamente nesses problemas e dificuldades, embora não deixe de destacar também suas realizações. Como mandam seus manuais de redação, ambos buscam um certo equilíbrio editorial. Mas na comparação, é evidente que a balança pesa para o lado das inclinações ideológicas de cada um.
O “Estado” lembra com nostalgia a época histórica da construção do país e da Universidade, embora não saiba situar com precisão em que momento o rumo se perdeu. A “Folha” dramatiza com abundância de quadros e números a situação crítica da Universidade, embora não saiba também situar em que momento o país perdeu seu rumo. A “Folha” não o sabe pelo fato de que isso se deu justamente na época em que a própria “Folha” passou a ter uma maior audiência, a época da resistência à ditadura e da redemocratização subseqüente, o que porém é uma outra questão. A esse respeito, ver a parte 4. Seja como for, o caderno da “Folha” é mais útil no que se refere a tentar entender a situação atual da Universidade.
2.1 Dados
2.1.1 Orçamento da Universidade, ano a ano (em milhões de reais).
887,41(1997) 842,25(1998) 918,04(1999) 1.173,95(2000)
1.273,36(2001) 1.404,62(2002) 1.548,40(2003)
2.1.2 Alunos matriculados.
1989 – 46.837 1992 – 53.976 1994 – 55.039
1996 – 56.414 1999 – 67.239 2002 – 72.867
2.1.3 Professores.
1989 – 5.626 1992 – 5.406 1994 – 5.310
1996 – 4.953 1999 – 4.728 2002 – 4.884
2.1.4 Alunos por professor
1989 – 8,3 1992 – 10 1994 – 10,4
1996 – 11,4 1999 14,2 2002 – 14,9
2.1.5 Total de alunos matriculados (2002): 72.867
= 42.554 Graduação
= 12.243 Mestrado
= 11.466 Doutorado
= 6.604 Outros
2.1.6 Distribuição de alunos:
56,1% Homens – 43,9 % Mulheres
Curso com maior % de homens: Engenharia mecatrônica – 98%
Curso com maior % de mulheres: Fonoaudiologia – 100 %
69,5 % vem do ensino privado, 29,4% ensino público, 1,1 % outros
Curso com maior % de alunos do ensino público: Ciências da informação e da documentação – 74,4%
Curso com maior % de alunos do ensino privado: Medicina – 95,4%
Distribuição étnica: 79,6% Brancos
9,8 % Negros
10,2% Amarelos
0,4% Indígenas
Curso com maior % de brancos: Artes cênicas – 100%
Curso com maior % de negros: Biblioteconomia – 30%
Curso com maior % de Amarelos: Ciências Contábeis – 32,7%
Numero de artigos publicados em revistas científicas (2003)
Brasil 13.930 USP 3.460 Mundo 865.393
Fonte: “Folha de São Paulo”, 23/01/2004
2.2 Comentário
A primeira evidência que salta desses números é o fato de que os brancos e os ricos predominam nos cursos mais disputados. Só entra num curso como medicina, engenharia ou direito quem pode estudar muito, num cursinho de altíssimo nível, acessível apenas a quem não precisa trabalhar para sobreviver e pode pagar muito caro. Os pobres e os negros, por sua vez, só conseguem entrar nos cursos menos disputados e de menor prestígio social. Mesmo assim o logotipo USP num diploma, qualquer que seja o curso, é uma marca de sucesso.
A esse respeito, posso partilhar uma experiência pessoal. Quando perguntado sobre que faculdade eu faço (é óbvio que você tem que fazer uma faculdade!), e respondo “filosofia”, as pessoas me olham de modo estranho, como que consternadas. Pensam coisas como: “Coitado, o que aconteceu com ele?” “Quem pode se interessar por um curso como esse?” “Quem é o fracassado que vai querer estudar filosofia?” “Isso dá dinheiro?” Mas então perguntam: “Onde você estuda?” A resposta: “na USP”. Ao som dessa palavra mágica, “USP”, os olhos brilham de admiração. A USP é a miragem suprema de sucesso, de futuro garantido, prestígio social e glória intelectual. Mal sabem o que este escriba pensa do curso que faz. Mas caso alguém queira saber, basta ler a parte 5 e o apêndice deste comentário.
O que importa, porém, para o aspecto que aqui se quer discutir é o peso que a USP ainda detém no imaginário popular como garantia de formação de qualidade, que por sua vez é garantia de sucesso profissional. A USP é uma doação pública para o sucesso privado. Esse é o paradoxo uspiano. A universidade é pública, mas o sucesso de seus alunos é privado. Não há retorno social compatível com o investimento público.
O governo do Estado reserva uma porcentagem fixa da arrecadação do ICMS para custeio da Universidade. Esse dinheiro é investido em infra-estrutura, laboratórios, equipamentos, bibliotecas, bolsas de estudo, professores. O resultado é a formação de acadêmicos e profissionais de grande qualidade. A USP forma 30% dos doutores do Brasil. Responde por 25% da pesquisa científica, com 10% dos pesquisadores. A instituição reproduz com eficácia seus quadros acadêmicos, produzindo professores capazes de levar adiante o trabalho científico tanto na própria USP como em outras universidades brasileiras, que se beneficiaram de seu impulso e reproduziram o modelo.
Quando saímos porém do mundo acadêmico, em que resulta o padrão de excelência uspiano? Os profissionais formados na USP revertem para a sociedade o benefício da formação que ali obtiveram? Do ponto de vista da teoria econômica liberal, a resposta é afirmativa. Os profissionais formados num curso de qualidade entram no mundo da produção e fazem crescer o mercado e a economia do país, o que teoricamente beneficia a todos. Mas isso é uma retribuição apenas hipotética, abstrata.
O que estamos querendo dizer é que ninguém sai da USP com a idéia de devolver à sociedade, sob a forma de serviços, o que recebeu sob a forma de educação. Ninguém o faz não por falha de caráter, por imperfeição moral pessoal, mas por um defeito sistêmico. A Universidade não foi criada para isso. Ela foi criada de acordo com o padrão típico dos demais órgãos do Estado brasileiro. O Estado brasileiro foi criado para ser o esteio do privilégio das classes dominantes. No mínimo, serve como cabide de empregos.
De modo geral, o Estado brasileiro, e dentro dele a Universidade, socializa os custos e privatiza os benefícios. Quando mostramos números que revelam a predominância dos brancos e ricos nos cursos mais disputados não é no sentido de acusá-los pessoalmente de usurpar algo que deveria pertencer a todos. A falha não é pessoal, mas social. Pessoalmente, as famílias que conseguem colocar seus filhos na USP estão jogando o jogo conforme as regras que encontraram. Estão tratando de lhes assegurar o futuro. Que isso não seja mais 100% verdadeiro é algo que discutiremos na parte 3. O que importa é que essa idéia persiste.
Passar no famigerado vestibular da Fuvest é como passar por uma prova de fogo, uma porta estreita, uma “via crucis”, um corredor polonês. Muitos só conseguem depois de inúmeras tentativas, estudando durante anos em cursinhos. Passar na Fuvest é como passar num concurso público, como ganhar no Show do Milhão, ou acertar na loteria. É uma miragem de futuro garantido, assegurado à base de sacrificar os neurônios. Pois o que se estuda para passar num vestibular ou num concurso não tem nada a ver com o que se encontra na Universidade ou no serviço público. É a popular “decoreba”, uma massa de dados decorados apenas para serem esquecidos no dia seguinte ao da prova.
Mas é assim que se entra na USP. Essa miragem da prova da Fuvest alimenta toda uma indústria de cursinhos que viceja na miséria do ensino médio brasileiro. Aí está o xis da questão. O problema não é que entrem na USP apenas os “ricos” ou os “privilegiados”. Isso é o aspecto secundário do problema principal, que é a falência do ensino médio. O discurso de que os alunos de Universidades públicas são “privilegiados” fundamenta estratégias oportunistas de desmonte e sucateamento dessas Universidades, tais como as que debateremos na parte 3.
O raciocínio que subjaz a esse discurso é de que, “já que só uns poucos privilegiados podem entrar na Universidade, destruamos a Universidade, para que não haja mais privilegiados.” Ao invés de elevar o nível dos que estão embaixo, querem rebaixar o nível dos que estão acima. O discurso oportunista do nivelamento por baixo se ajusta bem ao populismo rasteiro da política neoliberal. Acabar com o ensino superior gratuito é uma proposta que encontra grande apelo popular, pois pode ser apresentado como uma proposta para acabar com o “privilégio”. Uma proposta de aparência democrática. Há quem compre essa idéia.
O neoliberalismo tem ojeriza a tudo que é público, coletivo, social, comunitário. Do ponto de vista neoliberal, sindicatos, clubes, associações, grêmios, são entraves ao livre desenvolvimento do indivíduo. Tudo isso deve ser dissolvido, para que o mercado encontre os indivíduos em sua nudez. E possa fornecer Universidades pagas, ao invés de públicas. Para o neoliberal, a Universidade pública é ineficiente, já que ele não vê meios de ganhar dinheiro com elas. É urgente destruir a Universidade pública, para faturar em cima do seu cadáver. Por isso, os membros do Ministério da Educação da era tucana, como o próprio Paulo Renato, se tornam consultores a serviço de projetos de privatização, compatíveis com a idéia do Banco Mundial de privatizar toda espécie de serviço público.
É impossível discutir o projeto de Universidade sem discutir um projeto de país, o que é tema da parte 4. Por enquanto, o que se pode adiantar é que o Banco Mundial, a OMC, o FMI e os especuladores internacionais estão de olho no “mercado” representado pela educação superior no Brasil, assim como no saneamento básico, eletricidade, saúde, etc.. Do seu ponto de vista, são serviços como outro qualquer. O esqueleto de uma Nação, sua infra-estrutura de serviços públicos, deve ser sucateado e vendido para que esses serviços possam ser explorados pelo mercado. E o país deixe de ter ossatura para esboçar qualquer movimento de autonomia ou auto-determinação.
Outra idéia oportunista nascida da mesma matriz neoliberal é a de cobrar uma alíquota de imposto de renda diferenciada dos ex-alunos da USP, para custeio da Universidade. Parece uma idéia progressista, democrática e igualitária. É uma maneira de fazer o indivíduo retribuir à força aquilo que recebeu da Universidade. Mas na verdade, é uma idéia pérfida, que responsabiliza o indivíduo por uma função que é do Estado. O indivíduo é culpabilizado pelo “crime” de ter estudado numa Universidade de qualidade. E simultaneamente, o Estado é eximido de sua responsabilidade institucional de prover um ensino de qualidade. Essa idéia vai contra toda a essência do projeto de uma Universidade pública.
É pública porque é de responsabilidade do Estado e é acessível todos. Acessível a todos? A estatística mostra que não. Os pobres não conseguem entrar na Universidade. Porque vêm de um ensino médio mais que precário. No Brasil, o ensino superior é o único dos níveis de ensino que funciona. O ensino médio e o básico são caricaturas do que deve ser uma Escola. Transformaram-se em um meio termo entre creches e FEBENs. Não ensinam nada e mantém crianças e jovens confinados.
Professores mal-pagos, desmotivados e precariamente formados, sem estrutura para trabalhar, desdobram-se entre uma escola e outra para sobreviver, encontrando turmas de alunos que não estão interessados em aprender nada, nem preocupados com seu futuro. Não há mais idéia de futuro no Brasil. No futuro, os jovens querem ser pagodeiros ou jogadores de futebol, as jovens querem ser dançarinas do Tchan ou capas da playboy, o que dá no mesmo. A escola é mais um “point” do que um local de estudo. Ou pior ainda, é um ponto de venda de drogas.
Um gestor neoliberal vê essa situação e vai aos números. Ele não consegue enxergar pessoas, apenas estatísticas. Os números dizem que o ensino superior recebe mais verbas do que o ensino médio e o básico. Logo, a solução neoliberal é diminuir as verbas do ensino superior. Essa é a sua idéia abstrata de justiça social, um remanejamento dos números, para que caibam no orçamento, já que não consegue se relacionar ao nível humano e enxergar a catástrofe que são as escolas brasileiras. Se os gastos com o ensino básico e médio são insuficientes, que se aumente sua verba ao nível necessário, tornando-o compatível com a qualidade do ensino superior.
Esse é no fundo o problema de todo o país como o Brasil. Um país que se modernizou apenas pela metade. Como não se consegue completar o projeto de país que foi esboçado, querem destruir a metade que já foi feita. Temos um sistema de Universidades públicas que abrange uma ínfima parcela da população. Já que não conseguimos expandi-lo, destruamos o pouco que existe. É mais fácil do que inverter a prioridade das políticas publicas e generalizar os serviços necessários a toda a população.
Essa discussão já parece porém um pouco envelhecida, pois sobe certo ponto de vista, nem o ensino público nem o privado parecem ser garantia de qualquer futuro. É o que veremos na parte 3.
Daniel M. Delfino
27/05/2004
Pelo motivo inverso, o título do caderno da “Folha” é “Uma Universidade na Encruzilhada.” Grosso modo, a ênfase da história contada pelo Estadão está na importância e no peso histórico das realizações da USP, mais do que nos seus percalços e dificuldades, passadas e presentes. A ênfase da “Folha” está justamente nesses problemas e dificuldades, embora não deixe de destacar também suas realizações. Como mandam seus manuais de redação, ambos buscam um certo equilíbrio editorial. Mas na comparação, é evidente que a balança pesa para o lado das inclinações ideológicas de cada um.
O “Estado” lembra com nostalgia a época histórica da construção do país e da Universidade, embora não saiba situar com precisão em que momento o rumo se perdeu. A “Folha” dramatiza com abundância de quadros e números a situação crítica da Universidade, embora não saiba também situar em que momento o país perdeu seu rumo. A “Folha” não o sabe pelo fato de que isso se deu justamente na época em que a própria “Folha” passou a ter uma maior audiência, a época da resistência à ditadura e da redemocratização subseqüente, o que porém é uma outra questão. A esse respeito, ver a parte 4. Seja como for, o caderno da “Folha” é mais útil no que se refere a tentar entender a situação atual da Universidade.
2.1 Dados
2.1.1 Orçamento da Universidade, ano a ano (em milhões de reais).
887,41(1997) 842,25(1998) 918,04(1999) 1.173,95(2000)
1.273,36(2001) 1.404,62(2002) 1.548,40(2003)
2.1.2 Alunos matriculados.
1989 – 46.837 1992 – 53.976 1994 – 55.039
1996 – 56.414 1999 – 67.239 2002 – 72.867
2.1.3 Professores.
1989 – 5.626 1992 – 5.406 1994 – 5.310
1996 – 4.953 1999 – 4.728 2002 – 4.884
2.1.4 Alunos por professor
1989 – 8,3 1992 – 10 1994 – 10,4
1996 – 11,4 1999 14,2 2002 – 14,9
2.1.5 Total de alunos matriculados (2002): 72.867
= 42.554 Graduação
= 12.243 Mestrado
= 11.466 Doutorado
= 6.604 Outros
2.1.6 Distribuição de alunos:
56,1% Homens – 43,9 % Mulheres
Curso com maior % de homens: Engenharia mecatrônica – 98%
Curso com maior % de mulheres: Fonoaudiologia – 100 %
69,5 % vem do ensino privado, 29,4% ensino público, 1,1 % outros
Curso com maior % de alunos do ensino público: Ciências da informação e da documentação – 74,4%
Curso com maior % de alunos do ensino privado: Medicina – 95,4%
Distribuição étnica: 79,6% Brancos
9,8 % Negros
10,2% Amarelos
0,4% Indígenas
Curso com maior % de brancos: Artes cênicas – 100%
Curso com maior % de negros: Biblioteconomia – 30%
Curso com maior % de Amarelos: Ciências Contábeis – 32,7%
Numero de artigos publicados em revistas científicas (2003)
Brasil 13.930 USP 3.460 Mundo 865.393
Fonte: “Folha de São Paulo”, 23/01/2004
2.2 Comentário
A primeira evidência que salta desses números é o fato de que os brancos e os ricos predominam nos cursos mais disputados. Só entra num curso como medicina, engenharia ou direito quem pode estudar muito, num cursinho de altíssimo nível, acessível apenas a quem não precisa trabalhar para sobreviver e pode pagar muito caro. Os pobres e os negros, por sua vez, só conseguem entrar nos cursos menos disputados e de menor prestígio social. Mesmo assim o logotipo USP num diploma, qualquer que seja o curso, é uma marca de sucesso.
A esse respeito, posso partilhar uma experiência pessoal. Quando perguntado sobre que faculdade eu faço (é óbvio que você tem que fazer uma faculdade!), e respondo “filosofia”, as pessoas me olham de modo estranho, como que consternadas. Pensam coisas como: “Coitado, o que aconteceu com ele?” “Quem pode se interessar por um curso como esse?” “Quem é o fracassado que vai querer estudar filosofia?” “Isso dá dinheiro?” Mas então perguntam: “Onde você estuda?” A resposta: “na USP”. Ao som dessa palavra mágica, “USP”, os olhos brilham de admiração. A USP é a miragem suprema de sucesso, de futuro garantido, prestígio social e glória intelectual. Mal sabem o que este escriba pensa do curso que faz. Mas caso alguém queira saber, basta ler a parte 5 e o apêndice deste comentário.
O que importa, porém, para o aspecto que aqui se quer discutir é o peso que a USP ainda detém no imaginário popular como garantia de formação de qualidade, que por sua vez é garantia de sucesso profissional. A USP é uma doação pública para o sucesso privado. Esse é o paradoxo uspiano. A universidade é pública, mas o sucesso de seus alunos é privado. Não há retorno social compatível com o investimento público.
O governo do Estado reserva uma porcentagem fixa da arrecadação do ICMS para custeio da Universidade. Esse dinheiro é investido em infra-estrutura, laboratórios, equipamentos, bibliotecas, bolsas de estudo, professores. O resultado é a formação de acadêmicos e profissionais de grande qualidade. A USP forma 30% dos doutores do Brasil. Responde por 25% da pesquisa científica, com 10% dos pesquisadores. A instituição reproduz com eficácia seus quadros acadêmicos, produzindo professores capazes de levar adiante o trabalho científico tanto na própria USP como em outras universidades brasileiras, que se beneficiaram de seu impulso e reproduziram o modelo.
Quando saímos porém do mundo acadêmico, em que resulta o padrão de excelência uspiano? Os profissionais formados na USP revertem para a sociedade o benefício da formação que ali obtiveram? Do ponto de vista da teoria econômica liberal, a resposta é afirmativa. Os profissionais formados num curso de qualidade entram no mundo da produção e fazem crescer o mercado e a economia do país, o que teoricamente beneficia a todos. Mas isso é uma retribuição apenas hipotética, abstrata.
O que estamos querendo dizer é que ninguém sai da USP com a idéia de devolver à sociedade, sob a forma de serviços, o que recebeu sob a forma de educação. Ninguém o faz não por falha de caráter, por imperfeição moral pessoal, mas por um defeito sistêmico. A Universidade não foi criada para isso. Ela foi criada de acordo com o padrão típico dos demais órgãos do Estado brasileiro. O Estado brasileiro foi criado para ser o esteio do privilégio das classes dominantes. No mínimo, serve como cabide de empregos.
De modo geral, o Estado brasileiro, e dentro dele a Universidade, socializa os custos e privatiza os benefícios. Quando mostramos números que revelam a predominância dos brancos e ricos nos cursos mais disputados não é no sentido de acusá-los pessoalmente de usurpar algo que deveria pertencer a todos. A falha não é pessoal, mas social. Pessoalmente, as famílias que conseguem colocar seus filhos na USP estão jogando o jogo conforme as regras que encontraram. Estão tratando de lhes assegurar o futuro. Que isso não seja mais 100% verdadeiro é algo que discutiremos na parte 3. O que importa é que essa idéia persiste.
Passar no famigerado vestibular da Fuvest é como passar por uma prova de fogo, uma porta estreita, uma “via crucis”, um corredor polonês. Muitos só conseguem depois de inúmeras tentativas, estudando durante anos em cursinhos. Passar na Fuvest é como passar num concurso público, como ganhar no Show do Milhão, ou acertar na loteria. É uma miragem de futuro garantido, assegurado à base de sacrificar os neurônios. Pois o que se estuda para passar num vestibular ou num concurso não tem nada a ver com o que se encontra na Universidade ou no serviço público. É a popular “decoreba”, uma massa de dados decorados apenas para serem esquecidos no dia seguinte ao da prova.
Mas é assim que se entra na USP. Essa miragem da prova da Fuvest alimenta toda uma indústria de cursinhos que viceja na miséria do ensino médio brasileiro. Aí está o xis da questão. O problema não é que entrem na USP apenas os “ricos” ou os “privilegiados”. Isso é o aspecto secundário do problema principal, que é a falência do ensino médio. O discurso de que os alunos de Universidades públicas são “privilegiados” fundamenta estratégias oportunistas de desmonte e sucateamento dessas Universidades, tais como as que debateremos na parte 3.
O raciocínio que subjaz a esse discurso é de que, “já que só uns poucos privilegiados podem entrar na Universidade, destruamos a Universidade, para que não haja mais privilegiados.” Ao invés de elevar o nível dos que estão embaixo, querem rebaixar o nível dos que estão acima. O discurso oportunista do nivelamento por baixo se ajusta bem ao populismo rasteiro da política neoliberal. Acabar com o ensino superior gratuito é uma proposta que encontra grande apelo popular, pois pode ser apresentado como uma proposta para acabar com o “privilégio”. Uma proposta de aparência democrática. Há quem compre essa idéia.
O neoliberalismo tem ojeriza a tudo que é público, coletivo, social, comunitário. Do ponto de vista neoliberal, sindicatos, clubes, associações, grêmios, são entraves ao livre desenvolvimento do indivíduo. Tudo isso deve ser dissolvido, para que o mercado encontre os indivíduos em sua nudez. E possa fornecer Universidades pagas, ao invés de públicas. Para o neoliberal, a Universidade pública é ineficiente, já que ele não vê meios de ganhar dinheiro com elas. É urgente destruir a Universidade pública, para faturar em cima do seu cadáver. Por isso, os membros do Ministério da Educação da era tucana, como o próprio Paulo Renato, se tornam consultores a serviço de projetos de privatização, compatíveis com a idéia do Banco Mundial de privatizar toda espécie de serviço público.
É impossível discutir o projeto de Universidade sem discutir um projeto de país, o que é tema da parte 4. Por enquanto, o que se pode adiantar é que o Banco Mundial, a OMC, o FMI e os especuladores internacionais estão de olho no “mercado” representado pela educação superior no Brasil, assim como no saneamento básico, eletricidade, saúde, etc.. Do seu ponto de vista, são serviços como outro qualquer. O esqueleto de uma Nação, sua infra-estrutura de serviços públicos, deve ser sucateado e vendido para que esses serviços possam ser explorados pelo mercado. E o país deixe de ter ossatura para esboçar qualquer movimento de autonomia ou auto-determinação.
Outra idéia oportunista nascida da mesma matriz neoliberal é a de cobrar uma alíquota de imposto de renda diferenciada dos ex-alunos da USP, para custeio da Universidade. Parece uma idéia progressista, democrática e igualitária. É uma maneira de fazer o indivíduo retribuir à força aquilo que recebeu da Universidade. Mas na verdade, é uma idéia pérfida, que responsabiliza o indivíduo por uma função que é do Estado. O indivíduo é culpabilizado pelo “crime” de ter estudado numa Universidade de qualidade. E simultaneamente, o Estado é eximido de sua responsabilidade institucional de prover um ensino de qualidade. Essa idéia vai contra toda a essência do projeto de uma Universidade pública.
É pública porque é de responsabilidade do Estado e é acessível todos. Acessível a todos? A estatística mostra que não. Os pobres não conseguem entrar na Universidade. Porque vêm de um ensino médio mais que precário. No Brasil, o ensino superior é o único dos níveis de ensino que funciona. O ensino médio e o básico são caricaturas do que deve ser uma Escola. Transformaram-se em um meio termo entre creches e FEBENs. Não ensinam nada e mantém crianças e jovens confinados.
Professores mal-pagos, desmotivados e precariamente formados, sem estrutura para trabalhar, desdobram-se entre uma escola e outra para sobreviver, encontrando turmas de alunos que não estão interessados em aprender nada, nem preocupados com seu futuro. Não há mais idéia de futuro no Brasil. No futuro, os jovens querem ser pagodeiros ou jogadores de futebol, as jovens querem ser dançarinas do Tchan ou capas da playboy, o que dá no mesmo. A escola é mais um “point” do que um local de estudo. Ou pior ainda, é um ponto de venda de drogas.
Um gestor neoliberal vê essa situação e vai aos números. Ele não consegue enxergar pessoas, apenas estatísticas. Os números dizem que o ensino superior recebe mais verbas do que o ensino médio e o básico. Logo, a solução neoliberal é diminuir as verbas do ensino superior. Essa é a sua idéia abstrata de justiça social, um remanejamento dos números, para que caibam no orçamento, já que não consegue se relacionar ao nível humano e enxergar a catástrofe que são as escolas brasileiras. Se os gastos com o ensino básico e médio são insuficientes, que se aumente sua verba ao nível necessário, tornando-o compatível com a qualidade do ensino superior.
Esse é no fundo o problema de todo o país como o Brasil. Um país que se modernizou apenas pela metade. Como não se consegue completar o projeto de país que foi esboçado, querem destruir a metade que já foi feita. Temos um sistema de Universidades públicas que abrange uma ínfima parcela da população. Já que não conseguimos expandi-lo, destruamos o pouco que existe. É mais fácil do que inverter a prioridade das políticas publicas e generalizar os serviços necessários a toda a população.
Essa discussão já parece porém um pouco envelhecida, pois sobe certo ponto de vista, nem o ensino público nem o privado parecem ser garantia de qualquer futuro. É o que veremos na parte 3.
Daniel M. Delfino
27/05/2004
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