2.5.07

70 anos da USP – Parte 3




CRISE

Rubem Alves, colunista da “Folha de S.Paulo”, no texto “Diploma não é solução”, discorda da alegria dos recém-aprovados no vestibular:

“...eles estão enganados. Estão alegres porque acreditam que a universidade é a chave do mundo. Acabaram de chegar ao último patamar. As celebrações têm o mesmo sentido que os eventos iniciáticos – nas culturas ditas primitivas, as provas a que têm de se submeter os jovens que passaram pela puberdade. Passadas as provas e os seus sofrimentos, os jovens deixaram de ser crianças. Agora são adultos, com todos os seus direitos e deveres. Podem assentar-se na roda dos homens. Assim como os nossos jovens agora podem dizer: "Deixei o cursinho. Estou na universidade.

Houve um tempo em que as celebrações eram justas. Isso foi há muito tempo, quando eu era jovem. Naqueles tempos, um diploma universitário era garantia de trabalho. Os pais se davam como prontos para morrer quando uma destas coisas acontecia: 1) a filha se casava. Isso garantia o seu sustento pelo resto da vida; 2) a filha tirava o diploma de normalista. Isso garantiria o seu sustento caso não casasse; 3) o filho entrava para o Banco o Brasil; 4) o filho tirava diploma. O diploma era mais que garantia de emprego. Era um atestado de nobreza. Quem tirava diploma não precisava trabalhar com as mãos, como os mecânicos, pedreiros e carpinteiros, que tinham mãos rudes e sujas.

Para provar para todo mundo que não trabalhavam com as mãos, os diplomados tratavam de pôr no dedo um anel com pedra colorida. Havia pedras para todas as profissões: médicos, advogados, músicos, engenheiros. Até os bispos tinham suas pedras.

(Ah! Ia me esquecendo: os pais também se davam como prontos para morrer quando o filho entrava para o seminário para ser padre – aos 45 anos seria bispo – ou para o exército para ser oficial —aos 45 anos seria general.) Essa ilusão continua a morar na cabeça dos pais e introduzida na cabeça dos filhos desde pequenos. Profissão honrosa é profissão que tem diploma universitário. Profissão rendosa é a que tem diploma universitário. Cria-se, então, a fantasia de que as únicas opções de profissão são aquelas oferecidas pelas universidades.

Quando se pergunta a um jovem "O que é que você vai fazer?", o sentido dessa pergunta é "Quando você for preencher os formulários do vestibular, qual das opções oferecidas você vai escolher?". E as opções não oferecidas? Haverá alternativas de trabalho que não se encontram nos formulários de vestibular? Como todos os pais querem que seus filhos entrem na universidade e (quase) todos os jovens querem entrar na universidade, configura-se um mercado imenso, mas imenso mesmo, de pessoas desejosas de diplomas e prontas a pagar o preço. Enquanto houver jovens que não passam nos vestibulares das universidades do Estado, haverá mercado para a criação de universidades particulares. É um bom negócio.

Alegria na entrada. Tristeza ao sair. Forma-se, então, a multidão de jovens com diploma na mão, mas que não conseguem arranjar emprego. Por uma razão aritmética: o número de diplomados é muitas vezes maior que o número de empregos. Já sugeri que os jovens que entram na universidade deveriam aprender, junto com o curso "nobre" que freqüentam, um ofício: marceneiro, mecânico, cozinheiro, jardineiro, técnico de computador, eletricista, encanador, descupinizador, motorista de trator... O rol de ofícios possíveis é imenso. Pena que, nas escolas, as crianças e os jovens não sejam informados sobre essas alternativas, por vezes mais felizes e mais rendosas.”

O texto completo pode ser lido em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u834.shtml Esse tipo de texto busca desmistificar a idéia de “sucesso” que cerca a mitologia da Universidade. De modo geral, os textos de Rubem Alves procuram alargar os horizontes do mundo acadêmico-universitário e despertar seu público para certas dimensões da vida alheias a esse mundo, mas nem por isso desimportantes, de molde a tornar essa mesma experiência acadêmica-universitária mais rica e mais humana. Motivo pelo qual sua leitura é sempre recomendável.

O texto serve porém como uma evidência preocupante de um certo estado de coisas que o tornam pertinente ao tema que viemos debatendo. O texto é sintomático da situação em que se encontra o ensino superior no Brasil. Ele trata do descompasso entre a demanda e a oferta de ensino. O público tem certa expectativa em relação à Universidade. Mas essa expectativa não corresponde à realidade. Mesmo assim, o sistema de ensino superior erigido no Brasil fatura em cima dessa expectativa.

As Faculdades particulares vendem a idéia de que seus cursos são a garantia de profissões prestigiosas e rentáveis. Esse marketing explora uma expectativa difusa na sociedade de que é preciso estudar, é preciso se “aperfeiçoar”, é preciso se tornar “empregável”, para ser útil ao mercado e ganhar dinheiro. Que as Faculdades particulares não garantam mais isso, em função da situação do mercado de trabalho, não é a questão aqui. A questão é que a gestão das Universidades públicas passe a se pautar por esse mesmo discurso. Um discurso privatizante oportunista e marketeiro.

A Universidade está sintonizada com os tempos atuais. Está se dobrando ao mercado. O que está em curso com essa rendição é a própria destruição da Universidade pública. O modelo que a USP representa está sofrendo ataques de todos os lados. A direção instalada por administrações de tipo neoliberal, há dez anos dominando o governo paulista, tem tentado abrir brechas no seu modelo de funcionamento, de modo a destruir seu caráter público e sua estrutura baseada na unidade entre ensino, pesquisa e extensão. Esse tripé tem sido atacado por meio de iniciativas que buscam encaminhar-se para algum tipo de privatização, através do sucateamento e do desvirtuamento, ou das duas coisas combinadas.

Ao mesmo tempo em que merece todas as críticas por ter funcionado como uma instituição elitista a serviço da preservação da estratificação social, a USP precisa ser defendida como esqueleto remanescente de um projeto abortado de construção do país. O problema não é o fato de que os estudantes da USP sejam “privilegiados”. O problema é que apenas eles consigam entrar numa universidade. Do ponto de vista demagógico dos oportunistas de plantão, a USP deve ser dissolvida porque perpetua os privilégios. Ao invés de elevar-se o nível do ensino fundamental e médio, pretende-se rebaixar o do ensino superior. A Universidade pública precisa ser desacreditada, para ser privatizada.

Uma das formas de privatização branca é parceria com as chamadas “fundações”. As fundações são instituições que funcionam paralelas às faculdades, com o fim de conseguir verbas e viabilizar pesquisas. Atualmente, há institutos que dependem estritamente das fundações para funcionar. Sub-repticiamente, o Estado abre mão de sua função de financiar a pesquisa básica e delega-a à iniciativa privada.

A distorção vai além. Há fundações que oferecem cursos pagos para o público externo, usando as instalações e a mão de obra da USP. Há professores que recebem mais das fundações do que da própria USP. As fundações se beneficiam do investimento feito pelo Estado na formação dos professores para lucrar com cursos pagos. Esse fenômeno é típico de cursos como os MBAs de administração, que se utilizam da “grife” USP para atrair profissionais interessados em obter um “diferencial” para suas carreiras.

Desaparece aqui a idéia do caráter público da Universidade e de sua função como instrumento de políticas de Estado. A USP se torna uma instituição a serviço de demandas do mercado, volúveis e imediatistas. O problema não é em si a idéia de associação entre mercado e Universidade, típica dos países capitalistas centrais. O problema é que as empresas ditem os termos da relação e assumam o controle da situação, enquanto o Estado abre mão do papel que lhe é próprio. As parcerias uspianas em muitos aspectos são meros caça-níqueis. Não se trata de uma estratégia pensada a longo prazo para o desenvolvimento do país, mas de uma improvisação oportunista que tenta explorar brechas legais na instituição.

Tanto assim que as tentativas da reitoria de regulamentar a situação das fundações, fornecendo uma consolidação jurídica para aquilo que já funciona de fato, enfrentam forte oposição da comunidade acadêmica. Mas como sói acontecer, são sempre os diretos beneficiados por determinadas situações espúrias que detém justamente os poderes institucionais capazes de determinar a possível resolução dessas situações. Os membros da comissão que vai decidir sobre a regulamentação das fundações são na maioria ligados às fundações. O Estado brasileiro, em todas as suas esferas, e também nas Universidades, é um galinheiro onde as raposas tomam conta.

Sem regulamentação jurídica adequada, as fundações continuam a funcionar, oferecendo cursos e ganhando dinheiro. Os cursinhos comunitários, porém, são forçados a se retirar da USP, por ordem do Ministério Público. O argumento do promotor? “Cursos pagos são contra a natureza pública da Universidade”. E quanto aos cursos oferecidos pelas fundações? Cursos pagos de extensão para executivos? Porque ninguém pensa em expulsar os executivos do campus com a mesma presteza? Dois pesos, duas medidas.

Além desse cinismo escancarado, temos o oportunismo explícito. Outro exemplo de projeto de sucateamento da Universidade é a idéia de criar uma USP na Zona Leste. À primeira vista, parece uma iniciativa louvável, destinada a ampliar a oferta de vagas de ensino superior para uma região notoriamente carente da capital. Mas o problema surge quando se questiona o tipo de curso que se pretende implantar. Ninguém quer levar cursos de Medicina, Engenharia e Direito para a Zona Leste. Pretende-se criar cursos cosméticos, engana-trouchas, no pior estilo UNIP, para sacar alguns dividendos eleitorais.

Quer-se criar cursos de “Promoter”, “Psicologia com ênfase em Recursos humanos”, “Marketing”, “Gerontologia”, “Gestão Ambiental.” Cursos de perfil “profissionalizante”, espécie de 2o. grau técnico em versão “de luxo”, com o “logotipo USP”. Querem transformar a USP numa Universidade que funciona como as Faculdades privadas, orientadas por demandas de mercado. Para o público não-universitário, que se mantém alheio às discussões sobre os rumos do ensino superior, a proposta aparece como atraente e sintonizada com as necessidades locais. O discurso demagógico das autoridades é reforçado pelo fato de que ninguém pode ser contra a criação de uma USP numa zona pobre da cidade. Resta-me acrescentar, na qualidade de habitante da Zona Leste, que uma tal Faculdade não me interessa.

A “USP-ZL” e a ofensiva pela regulamentação das fundações são sintomas da falência do modelo de Universidade e de sua crise. Poderiam ser apontados vários outros. A parte 1 menciona a greve estudantil de 2002, deflagrada para lutar pela contratação de professores. No decorrer dessa greve, descobrimos que não há um mecanismo automático de reposição dos chamados “claros” abertos pela aposentadoria do professores. Um professor se aposenta quando adquire o direito. Um professor novo só é contratado quando a reitoria assim o permite. O resultado é que os professores novos não estão sendo contratados no ritmo necessário para repor os claros. A parte 2 mostra a relação professor-aluno, que tem aumentado dramaticamente.

Nesse particular, os números são frios. A estatística dilui realidades diferentes no interior da Universidade. Há cursos com mais de 100 alunos por professor. Isso acontece, obviamente, na FFLCH, a mais sucateada de todas as unidades. Apesar de ser a mais barata de todas, pois requer tão somente livros e professores. Não se compara ao custo de um laboratório de física. A FFLCH está sendo porém sucateada, pois não interessa à reitoria alimentar uma massa de estudantes politicamente ativos. Há muitos alunos que não conseguem se formar porque não há professores para ministrar as matérias necessárias para completar os créditos requeridos para a formatura. Há frustração e desmotivação.

A Universidade, evidentemente, é apenas um microcosmo da sociedade. Há algo acontecendo na sociedade brasileira, que repercute na Universidade sob a forma dessa crise. A crise do macrocosmo da sociedade brasileira é o tema da parte 4.

Daniel M. Delfino

27/05/2004

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