PANORÂMICA
A Universidade de São Paulo está em crise. Não se trata de uma simples crise de falta de verbas, uma crise administrativa, uma crise política entre a administração e setores do professorado, em função do problema das fundações ou da USP-ZL; embora todas essas crises sejam aspectos particulares de um problema geral. A crise geral é uma crise de legitimidade da própria idéia da Universidade, que por sua vez é uma crise do próprio Estado brasileiro.
O Estado brasileiro não sabe mais para quê existe. Não sabe mais quais são as funções que lhe compete cumprir. Não sabe mais quais serviços deve oferecer à sociedade. Não sabe mais se deve ter universidades públicas ou não. A devastação neoliberal da década de 1990 reduziu o Estado a um agente administrador da dívida externa. Nessas condições, o Estado abriu mão da função que antes se lhe atribuía de oferecer serviços públicos à população, delegando tais serviços à iniciativa privada.
Privatizaram-se praticamente todos os serviços e empresas públicas, à exceção de Petrobrás, BB e CEF. O Estado brasileiro abriu mão do poder soberano de prover a infra-estrutura material e social para a sociedade brasileira. Esta sociedade se tornou presa de injunções mercadológicas e imediatistas. Não lhe cabe mais planejar seu futuro, decidir em que direção crescer, onde e de que forma alocar seus recursos. Os instrumentos para tal ação, totalmente precários que eram, deixaram praticamente de existir.
Quando se fala aqui em defesa de um projeto nacional, não se está defendendo o isolacionismo, o fechamento dos mercados, o estatismo, idéias típicas do nacionalismo arcaico. O que estamos defendendo é a prerrogativa soberana do Estado de planejar estrategicamente o destino da Nação. Também não estamos falando ainda de socialismo, tão somente de nacionalismo, embora na atual conjuntura de globalização predatória e desestabilizadora, uma idéia implique a outra.
Seja como for, o Estado brasileiro, ainda que de forma distorcida, cumpria alguma função estruturante. O paradoxo de sua história é a tentativa de modernizar a sociedade brasileira, sem contudo abrir mão da estrutura elitista e conservadora de direção política e social. O exemplo mais gritante desse paradoxo está na própria história da USP, que viemos debatendo. A elite brasileira quer uma Universidade de ponta, mas a fez apenas para si própria, para seu uso exclusivo como ferramenta de preservação de seu status social de elite. A classe dominante entende que o país lhe pertence como patrimônio privado. O Estado é o terreiro da Casa Grande. O Estado brasileiro é atavicamente patrimonialista.
Evidentemente, um tal modelo de Estado não poderia funcionar. A última tentativa de romper com esse modelo de Estado se deu no pré-64. O governo João Goulart, através das Reformas de base, buscava expandir, em benefício da maioria da população, o poder estruturante do Estado brasileiro. Na qualidade de herdeiro do trabalhismo de Getúlio, Jango tinha em mente um projeto de capitalismo brasileiro que se dispusesse a distribuir com mais generosidade o produto da acumulação, de modo a poder alargar seu própria base de valorização.
Nesse contexto, a Universidade representativa de um projeto nacional e popular, mais do que a USP, era a UnB de Darcy Ribeiro. A USP não representava uma ameaça ideológica à ditadura, tal como a UnB. A oposição não era conceitual, era de nível pessoal. Foram os estudantes engajados e não a instituição que combateram a ditadura. Na qualidade de oásis intelectual, a USP continuou desenvolvendo seu trabalho. A massa da comunidade acadêmica lutava pela redemocratização; o projeto da Universidade prosseguia inabalável. Formalmente, a USP pôde continuar funcionando, ainda que a pressão sobre os setores politicamente ativos fosse intensa.
Os generais queriam esmagar qualquer possibilidade da classe dominante sintonizada com os interesses do capital estrangeiro perder o controle político do país. Para isso, os generais construíram um modelo de Estado forte e emularam uma ideologia de Brasil potência. Uma Universidade como a USP não era estruturalmente alheia a esse projeto. Podia muito bem ser cooptada. A mudança de poder foi sob certo aspecto indiferente para o projeto uspiano, uma vez que a Universidade estava vacinada desde o começo contra interferências políticas contingentes.
O pensamento tipicamente uspiano não estava sintonizado com a pensamento do pré-64, o trabalhismo nacionalista de Jango, embora não estivesse também de acordo com a doutrina de poder dos militares. Mas se a doutrina dos militares lhe era alheia, o pensamento trabalhista-nacionalista lhe era oposto. É preciso recorrer a um caso típico para ilustrar essa diferença.
A idéia tipicamente uspiana mais conhecida e tristemente influente no restante do Brasil, para nosso azar, é a teoria da dependência de FHC. Trata-se de um arremedo mal ajambrado da idéia de desenvolvimento desigual e combinado, explorada tipicamente pelos trotskystas. FHC inverte-lhe o sinal político, transformando-a numa teoria anti-nacional, estabelecendo o dogma de que o Brasil não pode ter um desenvolvimento capitalista autônomo, apenas dependente e associado. Posta em prática, essa idéia resultou na catástrofe neoliberal da década de 1990, da qual Lula é o alegre herdeiro.
A emergência dessa idéia no seio do pensamento uspiano não é um acidente. Ele decorre de determinadas características do trabalho acadêmico desenvolvido na USP na área de ciências humanas. A filosofia uspiana sempre foi particularmente hostil ao Brasil e à política nacional, com a importante ressalva de algumas valorosas exceções individuais. Institucionalmente, a filosofia uspiana permanece alheia ao país onde foi implantada.
A filosofia no Brasil é marcada pelo questionamento de sua própria legitimidade. A pergunta “porque filosofia no Brasil?” (título de uma conferência dos professores Paulo Arantes e Marilena Chauí, os dois mais qualificados quadros do departamento, proferida em 27/05/2004) se repõe reiteradamente. A reincidência dessa pergunta é um sintoma bastante significativo. Na Alemanha ou na França, ninguém pergunta “porque filosofia?”. Esses países possuem uma “auto-confiança filosófica” sedimentada por séculos de tradição. Um pensador francês ou alemão tem a certeza e a tranqüilidade de estar fazendo avançar a “filosofia em geral” e não a filosofia francesa ou alemã em particular. O problema da legitimidade da filosofia não se põe como um problema nacional, nos países desenvolvidos.
No Brasil sim. O pensamento filosófico brasileiro permanece prisioneiro da questão da legitimidade. Formalmente, o Brasil é um país kantiano, porque se pergunta, antes de filosofar, “porque filosofia?” Mas essa questão formal não tem conteúdo. Não há uma filosofia a ser desenvolvida depois de se responder porque desenvolvê-la. A filosofia brasileira não expressa o Brasil. Ela expressa sua própria formalidade vazia. Vigora uma espécie de auto-cerceamento filosófico das questões culturais no Brasil. O problema brasileiro não tem legitimidade como conteúdo filosófico acadêmico. O Brasil não consegue enxergar a si mesmo como um problema digno de fazer avançar a “filosofia em geral”. A reflexão sobre a realidade brasileira não é vista como capaz de suscitar o deslindamento conceitual e o surgimento de categorias filosóficas capazes de enriquecer o pensamento universal.
No Brasil, a filosofia somente se desenvolve sob as formas não-acadêmicas do positivismo e do marxismo vulgar. Dentro do sistema cultural brasileiro, a filosofia acadêmica não conseguia representar o Brasil. A literatura, o cinema, a música popular, a televisão, o futebol, conseguiram-no.
Por recusar o problema da auto-imagem nacional, a filosofia pôde se desenvolver como filosofia profissional acadêmica. A avaliação dos autores da citada conferência é de que este foi o aspecto positivo do alheamento em relação à realidade brasileira: a capacidade de se descolar do debate rasteiro da política imediatista, seja positivista, seja marxista vulgar. A tentativa de fazer filosofia tal como os países desenvolvidos a faziam era uma tentativa que por si só refletia uma mentalidade colonizada. Esse esforço de construir uma filosofia universitária que recusasse o problema da auto-imagem nacional era uma falsa consciência que por si só representava o atraso nacional, a necessidade de se equiparar aos países desenvolvidos.
Seja como for, essa problemática tornou-se agora irrelevante, uma vez que a tentativa de auto-construção da Nação esgotou-se, à partir da década de 1980. O ciclo de desenvolvimento iniciado em 1930 chegou ao fim por volta de 1980. Uma sucessão de crises econômicas, sob a forma de inflação e de endividamento, crises das quais ainda não saímos, legitimaram a idéia de que o país não tem mais futuro. O otimismo ufanista desapareceu. A derrota na Copa do Mundo de 1982 é decisiva como sinalização dessa mudança no estado de espírito. A partir daquele momento, o Brasil perdeu a auto-estima.
O Brasil é um fracasso. O que nos cabe fazer é seguir as receitas do FMI e rezar pela benevolência dos mercados. Numa tal atmosfera, não há mais espaço para a idéia de Estado, de serviços públicos, de instituições públicas, de universidades. O Brasil não precisa de nada disso, já que todo o “know-how” deve vir de fora. A superfluidade de uma filosofia brasileira é dada como auto-evidente. No momento em que mais precisamos dela, percebemos que a filosofia brasileira não tem músculos conceituais, apenas um esqueleto metodológico. Uma obra inacabada, um prédio do qual foram completadas apenas as colunas, como os elefantes brancos da ditadura. Um feto abortado, um monstrengo de luxo.
Há quem considere esse quadro vexatório e deprimente, opinião na qual se enquadra este escriba, agora falando na condição de aluno uspiano. A minha avaliação do curso de filosofia pode ser vista na parte 5. Por enquanto, assinalo aqui um radical inconformismo com essa inapetência criativa. Há porém quem considere que tudo correu como deveria. Caso de FHC, que fez de seu prestigio acadêmico o trampolim para o poder político.
A referida influência material da teoria feagaceana deve-se evidentemente à conjuntura internacional na qual ela se tornou instrumento político, por mais que o próprio FHC queira acreditar que se deveu a seus méritos pessoais. A teoria da dependência é, para usar a linguagem kantiana, uma “idéia necessária da razão” neoliberal. Se FHC não existisse, o FMI teria de inventá-lo.
Do ponto de vista do projeto posto em prática pelos militares, o banimento de figuras como FHC foi um engano, um mal-entendido. O projeto de FHC era “avançado” demais para os militares, pois dispensava a criação do Estado forte e entregava o poder diretamente ao capital estrangeiro, dispensando o intermediário, a burguesia nacional. Foi o que FHC fez no governo.
O desmonte do Estado brasileiro, começado com Collor, prossegui célere sob FHC. O pretexto demagógico, evidentemente, é a notória ineficiência deste Estado e a corrupção endêmica. Fixou-se a idéia de que o estatal é “inerentemente” ineficiente e perdulário. Uma idéia compatível com o preconceito do povo em geral contra os servidores públicos (marajás, barnabés). No esteio da hostilidade popular disseminada contra o Estado, generaliza-se o julgamento. O joio não é separado do trigo, o produtivo do improdutivo, o estratégico do corrompido. Para acabar com a doença, os privatistas mataram o paciente. Agora, os abutres do mercado jantam nossa carcaça.
A crise da Universidade pública está no epicentro dessa catástrofe. A Universidade pública é justamente o setor estratégico onde o Estado brasileiro poderia gerar os quadros e o conhecimento necessários para encaminhar qualquer possibilidade de desenvolvimento autônomo do país no século XXI. Agora que não se cogita mais da autonomia nacional, essa estrutura é desnecessária. O Estado brasileiro está abrindo mão das ferramentas mínimas para um desenvolvimento de tipo meramente capitalista. Nem isso mais é possível. Permaneceremos capitalistas, mas pobres, porque não teremos mais ferramentas para nos desenvolver.
A USP foi projetada pela missão francesa para permanecer alheia à política nacional. Nos anos de chumbo, esse alheamento foi o antídoto que impediu sua destruição, salvando-a do destino que teve a UnB. Na redemocratização “segura e gradual” que se seguiu, o alheamento foi o veneno que matou o fermento criativo da nova situação política Os intelectuais, muitos deles uspianos, que juntamente com os sindicalistas fundaram o PT em 1980, não tinham uma teoria de país para orientar seus passos. Era-lhe vedado pensar no país. A essência anti-nacional da teoria da dependência de FHC é uma espécie de defeito de nascença oculto de todo pensamento uspiano.
Estamos tentando desenhar um arco que vai do pensamento uspiano auto-contido ao petismo sem programa do governo Lula. Quando o PT tinha o viço e a criatividade de um movimento ascendente, era ainda jovem demais para chegar ao poder. Quando chega ao poder, é tarde demais para salvar o que restou do Estado brasileiro da Era Vargas. Nesse meio tempo, nesse intervalo crucial das décadas de 1980 e 90, a idéia de Brasil morreu.
Mencionamos acima que o Brasil teve uma opção de reconduzir a política do Estado na direção dos interesses da maioria da população, na época do pré-64. A ditadura tomou a direção oposta. O modelo de desenvolvimento excludente assim implantado esgotou-se no fim dos anos 70. A ditadura deveria acabar, pois sua gestão ineficiente da economia estava minando sua eficácia política. Na saída dos militares, um vácuo de projeto tomou conta do país. Aquela opção de conduzir o Estado na direção dos interesses da maioria da população não tinha mais um veículo político pelo qual se manifestar. Esse veículo político, que seria o PT, chegou tarde demais, e agora não tem mais o que fazer.
O pensamento uspiano, que poderia ser o esteio ideológico desse veículo, recusou-se a sê-lo. Agora, o PT sinaliza, com a continuidade da política neoliberal, o melancólico enterro da USP. Agora, estamos nesse clima de fim de feira, fim de festa, com uma mão na frente e outra atrás.
N
o apagar das luzes, este escriba chega ao curso de filosofia. Cumpre-lhe, na parte 5, descrever sua vivência desse curso.
Daniel M. Delfino
05/06/2004
O Estado brasileiro não sabe mais para quê existe. Não sabe mais quais são as funções que lhe compete cumprir. Não sabe mais quais serviços deve oferecer à sociedade. Não sabe mais se deve ter universidades públicas ou não. A devastação neoliberal da década de 1990 reduziu o Estado a um agente administrador da dívida externa. Nessas condições, o Estado abriu mão da função que antes se lhe atribuía de oferecer serviços públicos à população, delegando tais serviços à iniciativa privada.
Privatizaram-se praticamente todos os serviços e empresas públicas, à exceção de Petrobrás, BB e CEF. O Estado brasileiro abriu mão do poder soberano de prover a infra-estrutura material e social para a sociedade brasileira. Esta sociedade se tornou presa de injunções mercadológicas e imediatistas. Não lhe cabe mais planejar seu futuro, decidir em que direção crescer, onde e de que forma alocar seus recursos. Os instrumentos para tal ação, totalmente precários que eram, deixaram praticamente de existir.
Quando se fala aqui em defesa de um projeto nacional, não se está defendendo o isolacionismo, o fechamento dos mercados, o estatismo, idéias típicas do nacionalismo arcaico. O que estamos defendendo é a prerrogativa soberana do Estado de planejar estrategicamente o destino da Nação. Também não estamos falando ainda de socialismo, tão somente de nacionalismo, embora na atual conjuntura de globalização predatória e desestabilizadora, uma idéia implique a outra.
Seja como for, o Estado brasileiro, ainda que de forma distorcida, cumpria alguma função estruturante. O paradoxo de sua história é a tentativa de modernizar a sociedade brasileira, sem contudo abrir mão da estrutura elitista e conservadora de direção política e social. O exemplo mais gritante desse paradoxo está na própria história da USP, que viemos debatendo. A elite brasileira quer uma Universidade de ponta, mas a fez apenas para si própria, para seu uso exclusivo como ferramenta de preservação de seu status social de elite. A classe dominante entende que o país lhe pertence como patrimônio privado. O Estado é o terreiro da Casa Grande. O Estado brasileiro é atavicamente patrimonialista.
Evidentemente, um tal modelo de Estado não poderia funcionar. A última tentativa de romper com esse modelo de Estado se deu no pré-64. O governo João Goulart, através das Reformas de base, buscava expandir, em benefício da maioria da população, o poder estruturante do Estado brasileiro. Na qualidade de herdeiro do trabalhismo de Getúlio, Jango tinha em mente um projeto de capitalismo brasileiro que se dispusesse a distribuir com mais generosidade o produto da acumulação, de modo a poder alargar seu própria base de valorização.
Nesse contexto, a Universidade representativa de um projeto nacional e popular, mais do que a USP, era a UnB de Darcy Ribeiro. A USP não representava uma ameaça ideológica à ditadura, tal como a UnB. A oposição não era conceitual, era de nível pessoal. Foram os estudantes engajados e não a instituição que combateram a ditadura. Na qualidade de oásis intelectual, a USP continuou desenvolvendo seu trabalho. A massa da comunidade acadêmica lutava pela redemocratização; o projeto da Universidade prosseguia inabalável. Formalmente, a USP pôde continuar funcionando, ainda que a pressão sobre os setores politicamente ativos fosse intensa.
Os generais queriam esmagar qualquer possibilidade da classe dominante sintonizada com os interesses do capital estrangeiro perder o controle político do país. Para isso, os generais construíram um modelo de Estado forte e emularam uma ideologia de Brasil potência. Uma Universidade como a USP não era estruturalmente alheia a esse projeto. Podia muito bem ser cooptada. A mudança de poder foi sob certo aspecto indiferente para o projeto uspiano, uma vez que a Universidade estava vacinada desde o começo contra interferências políticas contingentes.
O pensamento tipicamente uspiano não estava sintonizado com a pensamento do pré-64, o trabalhismo nacionalista de Jango, embora não estivesse também de acordo com a doutrina de poder dos militares. Mas se a doutrina dos militares lhe era alheia, o pensamento trabalhista-nacionalista lhe era oposto. É preciso recorrer a um caso típico para ilustrar essa diferença.
A idéia tipicamente uspiana mais conhecida e tristemente influente no restante do Brasil, para nosso azar, é a teoria da dependência de FHC. Trata-se de um arremedo mal ajambrado da idéia de desenvolvimento desigual e combinado, explorada tipicamente pelos trotskystas. FHC inverte-lhe o sinal político, transformando-a numa teoria anti-nacional, estabelecendo o dogma de que o Brasil não pode ter um desenvolvimento capitalista autônomo, apenas dependente e associado. Posta em prática, essa idéia resultou na catástrofe neoliberal da década de 1990, da qual Lula é o alegre herdeiro.
A emergência dessa idéia no seio do pensamento uspiano não é um acidente. Ele decorre de determinadas características do trabalho acadêmico desenvolvido na USP na área de ciências humanas. A filosofia uspiana sempre foi particularmente hostil ao Brasil e à política nacional, com a importante ressalva de algumas valorosas exceções individuais. Institucionalmente, a filosofia uspiana permanece alheia ao país onde foi implantada.
A filosofia no Brasil é marcada pelo questionamento de sua própria legitimidade. A pergunta “porque filosofia no Brasil?” (título de uma conferência dos professores Paulo Arantes e Marilena Chauí, os dois mais qualificados quadros do departamento, proferida em 27/05/2004) se repõe reiteradamente. A reincidência dessa pergunta é um sintoma bastante significativo. Na Alemanha ou na França, ninguém pergunta “porque filosofia?”. Esses países possuem uma “auto-confiança filosófica” sedimentada por séculos de tradição. Um pensador francês ou alemão tem a certeza e a tranqüilidade de estar fazendo avançar a “filosofia em geral” e não a filosofia francesa ou alemã em particular. O problema da legitimidade da filosofia não se põe como um problema nacional, nos países desenvolvidos.
No Brasil sim. O pensamento filosófico brasileiro permanece prisioneiro da questão da legitimidade. Formalmente, o Brasil é um país kantiano, porque se pergunta, antes de filosofar, “porque filosofia?” Mas essa questão formal não tem conteúdo. Não há uma filosofia a ser desenvolvida depois de se responder porque desenvolvê-la. A filosofia brasileira não expressa o Brasil. Ela expressa sua própria formalidade vazia. Vigora uma espécie de auto-cerceamento filosófico das questões culturais no Brasil. O problema brasileiro não tem legitimidade como conteúdo filosófico acadêmico. O Brasil não consegue enxergar a si mesmo como um problema digno de fazer avançar a “filosofia em geral”. A reflexão sobre a realidade brasileira não é vista como capaz de suscitar o deslindamento conceitual e o surgimento de categorias filosóficas capazes de enriquecer o pensamento universal.
No Brasil, a filosofia somente se desenvolve sob as formas não-acadêmicas do positivismo e do marxismo vulgar. Dentro do sistema cultural brasileiro, a filosofia acadêmica não conseguia representar o Brasil. A literatura, o cinema, a música popular, a televisão, o futebol, conseguiram-no.
Por recusar o problema da auto-imagem nacional, a filosofia pôde se desenvolver como filosofia profissional acadêmica. A avaliação dos autores da citada conferência é de que este foi o aspecto positivo do alheamento em relação à realidade brasileira: a capacidade de se descolar do debate rasteiro da política imediatista, seja positivista, seja marxista vulgar. A tentativa de fazer filosofia tal como os países desenvolvidos a faziam era uma tentativa que por si só refletia uma mentalidade colonizada. Esse esforço de construir uma filosofia universitária que recusasse o problema da auto-imagem nacional era uma falsa consciência que por si só representava o atraso nacional, a necessidade de se equiparar aos países desenvolvidos.
Seja como for, essa problemática tornou-se agora irrelevante, uma vez que a tentativa de auto-construção da Nação esgotou-se, à partir da década de 1980. O ciclo de desenvolvimento iniciado em 1930 chegou ao fim por volta de 1980. Uma sucessão de crises econômicas, sob a forma de inflação e de endividamento, crises das quais ainda não saímos, legitimaram a idéia de que o país não tem mais futuro. O otimismo ufanista desapareceu. A derrota na Copa do Mundo de 1982 é decisiva como sinalização dessa mudança no estado de espírito. A partir daquele momento, o Brasil perdeu a auto-estima.
O Brasil é um fracasso. O que nos cabe fazer é seguir as receitas do FMI e rezar pela benevolência dos mercados. Numa tal atmosfera, não há mais espaço para a idéia de Estado, de serviços públicos, de instituições públicas, de universidades. O Brasil não precisa de nada disso, já que todo o “know-how” deve vir de fora. A superfluidade de uma filosofia brasileira é dada como auto-evidente. No momento em que mais precisamos dela, percebemos que a filosofia brasileira não tem músculos conceituais, apenas um esqueleto metodológico. Uma obra inacabada, um prédio do qual foram completadas apenas as colunas, como os elefantes brancos da ditadura. Um feto abortado, um monstrengo de luxo.
Há quem considere esse quadro vexatório e deprimente, opinião na qual se enquadra este escriba, agora falando na condição de aluno uspiano. A minha avaliação do curso de filosofia pode ser vista na parte 5. Por enquanto, assinalo aqui um radical inconformismo com essa inapetência criativa. Há porém quem considere que tudo correu como deveria. Caso de FHC, que fez de seu prestigio acadêmico o trampolim para o poder político.
A referida influência material da teoria feagaceana deve-se evidentemente à conjuntura internacional na qual ela se tornou instrumento político, por mais que o próprio FHC queira acreditar que se deveu a seus méritos pessoais. A teoria da dependência é, para usar a linguagem kantiana, uma “idéia necessária da razão” neoliberal. Se FHC não existisse, o FMI teria de inventá-lo.
Do ponto de vista do projeto posto em prática pelos militares, o banimento de figuras como FHC foi um engano, um mal-entendido. O projeto de FHC era “avançado” demais para os militares, pois dispensava a criação do Estado forte e entregava o poder diretamente ao capital estrangeiro, dispensando o intermediário, a burguesia nacional. Foi o que FHC fez no governo.
O desmonte do Estado brasileiro, começado com Collor, prossegui célere sob FHC. O pretexto demagógico, evidentemente, é a notória ineficiência deste Estado e a corrupção endêmica. Fixou-se a idéia de que o estatal é “inerentemente” ineficiente e perdulário. Uma idéia compatível com o preconceito do povo em geral contra os servidores públicos (marajás, barnabés). No esteio da hostilidade popular disseminada contra o Estado, generaliza-se o julgamento. O joio não é separado do trigo, o produtivo do improdutivo, o estratégico do corrompido. Para acabar com a doença, os privatistas mataram o paciente. Agora, os abutres do mercado jantam nossa carcaça.
A crise da Universidade pública está no epicentro dessa catástrofe. A Universidade pública é justamente o setor estratégico onde o Estado brasileiro poderia gerar os quadros e o conhecimento necessários para encaminhar qualquer possibilidade de desenvolvimento autônomo do país no século XXI. Agora que não se cogita mais da autonomia nacional, essa estrutura é desnecessária. O Estado brasileiro está abrindo mão das ferramentas mínimas para um desenvolvimento de tipo meramente capitalista. Nem isso mais é possível. Permaneceremos capitalistas, mas pobres, porque não teremos mais ferramentas para nos desenvolver.
A USP foi projetada pela missão francesa para permanecer alheia à política nacional. Nos anos de chumbo, esse alheamento foi o antídoto que impediu sua destruição, salvando-a do destino que teve a UnB. Na redemocratização “segura e gradual” que se seguiu, o alheamento foi o veneno que matou o fermento criativo da nova situação política Os intelectuais, muitos deles uspianos, que juntamente com os sindicalistas fundaram o PT em 1980, não tinham uma teoria de país para orientar seus passos. Era-lhe vedado pensar no país. A essência anti-nacional da teoria da dependência de FHC é uma espécie de defeito de nascença oculto de todo pensamento uspiano.
Estamos tentando desenhar um arco que vai do pensamento uspiano auto-contido ao petismo sem programa do governo Lula. Quando o PT tinha o viço e a criatividade de um movimento ascendente, era ainda jovem demais para chegar ao poder. Quando chega ao poder, é tarde demais para salvar o que restou do Estado brasileiro da Era Vargas. Nesse meio tempo, nesse intervalo crucial das décadas de 1980 e 90, a idéia de Brasil morreu.
Mencionamos acima que o Brasil teve uma opção de reconduzir a política do Estado na direção dos interesses da maioria da população, na época do pré-64. A ditadura tomou a direção oposta. O modelo de desenvolvimento excludente assim implantado esgotou-se no fim dos anos 70. A ditadura deveria acabar, pois sua gestão ineficiente da economia estava minando sua eficácia política. Na saída dos militares, um vácuo de projeto tomou conta do país. Aquela opção de conduzir o Estado na direção dos interesses da maioria da população não tinha mais um veículo político pelo qual se manifestar. Esse veículo político, que seria o PT, chegou tarde demais, e agora não tem mais o que fazer.
O pensamento uspiano, que poderia ser o esteio ideológico desse veículo, recusou-se a sê-lo. Agora, o PT sinaliza, com a continuidade da política neoliberal, o melancólico enterro da USP. Agora, estamos nesse clima de fim de feira, fim de festa, com uma mão na frente e outra atrás.
N
o apagar das luzes, este escriba chega ao curso de filosofia. Cumpre-lhe, na parte 5, descrever sua vivência desse curso.
Daniel M. Delfino
05/06/2004
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