FILOSOFIA
A vivência deste escriba como aluno de filosofia da USP tem se limitado a confrontar uma certa proposição de Aristóteles: “a felicidade só é possível no ócio”. Antes que se pense que Aristóteles está enunciando o óbvio, é necessário precisar o sentido do termo “felicidade” empregado nessa expressão. A felicidade de qualquer ser, para Aristóteles é a plena realização de sua essência. A essência do homem é a razão. A plena realização do homem é a plena realização da razão.
A plena realização da razão só é possível no ócio. O homem, para ser feliz, no sentido de ser plenamente homem, ou seja, plenamente racional, precisa do ócio. O homem só poderá ser feliz quando dispuser de ócio para desenvolver sua razão. O homem plenamente realizado, neste caso, é o próprio Aristóteles, que na qualidade de filósofo, pode desenvolver plenamente suas capacidades intelectuais. Ele pode fazê-lo porque dispõe de ócio para isso. Ele dispõe de ócio porque, na qualidade de homem livre, não precisa trabalhar para sobreviver. Sua sobrevivência está assegurada pelo trabalho dos escravos.
Ora, não vem a ser esse o caso deste escriba, bem como da maior parte dos leitores. Ao mesmo tempo em que tentamos desenvolver nossas capacidades intelectuais, tentamos também sobreviver. Para sobreviver, conforme já foi exposto em textos anteriores, este escriba trabalha como bancário, no bairro onde mora, o qual dista da USP em cerca de trinta quilômetros. Nessas circunstâncias, a questão do tempo disponível para dedicar-se à razão adquire dramática importância. Trabalhando 8 horas por dia (todo bancário faz horas extras, embora não receba por elas) e enfrentando 2 horas de trânsito na ida e mais 1 na volta, não dá para ser feliz.
Não obstante, tentamos contrariar Aristóteles. Mas tentamo-lo apenas na prática, evidentemente, pois na teoria Aristóteles é incontestável. Diante do que se produz contemporaneamente em filosofia, no Brasil e no mundo, é muito mais produtivo reler Aristóteles do que qualquer autor da moda. A esse respeito, remetemos ao apêndice que acompanha este especial. No apêndice, tematizamos as razões histórico-sociais pelas quais a filosofia se transforma na caricatura pela qual o senso comum a reconhece: pura especulação, pura abstração, pura retórica, palavreado inútil.
A filosofia se profissionaliza e se torna uma profissão acadêmica especulativa e taxidérmica, pois seu objeto lhe é roubado no momento em que se estabelece a concorrência das Ciências Humanas. As quais são especializações acadêmicas vazias. A filosofia dentro da universidade se torna um discurso auto-referenciado dedicado a reproduzir a si mesmo. A Universidade é o túmulo da filosofia. Em outros debates, apregoou-se a morte da arte, a morte da literatura, a morte do sujeito, até mesmo o fim da História. Assinala-se aqui a morte da filosofia.
O paralelo com a literatura é ilustrativo a esse respeito. Ninguém precisa cursar uma faculdade de letras para se tornar escritor. Um escritor se forma sozinho, fundamentalmente por meio de sua intuição, de sua sensibilidade, sua capacidade de articular vivências e percepções particulares dos problemas éticos em tipos estéticos significativos. Uma tal capacidade evidentemente se completa por meio do cultivo de um gosto estético particular e de uma erudição consistente com esse gosto, meios pelos quais se refina o talento para escrever. Um curso universitário de Letras pode ajudar nesse sentido, mas não é condição necessária nem determinante.
O mesmo não se dá porém com a filosofia, especialmente no Brasil. Não existe neste país o filósofo fora da Universidade. Quem se auto-proclama filósofo sem contar com um diploma universitário a lhe dar respaldo é automaticamente desconsiderado. Ademais, ninguém tem o interesse de se proclamar filósofo, uma vez que tal condição não é exigida num debate público. No Brasil, o escritor desempenha o papel de intelectual público que caberia ao filósofo. O romancista, o cronista, o poeta, o ensaísta, multiplicam suas intervenções na imprensa, na televisão, onde quer que seja, falando sobre política, sobre futebol, sobre cinema, sobre arte, sobre ética, etc. No Brasil, lugar de filósofo é mesmo a Universidade.
Não estamos aqui menosprezando o papel de alguns dos filósofos acadêmicos brasileiros que efetivamente intervém no debate público, apenas assinalando que tais personalidades são exceções à regra. Indo adiante na comparação com a literatura, percebemos que para ser escritor não é preciso ser formado em letras, mas para ser filósofo é preciso ser formado em filosofia. Coerentemente, os cursos de letras não formam escritores ou estudiosos de literatura, mas professores de língua e de literatura, o que não está errado. Mas os cursos de filosofia não formam filósofos e sim leitores profissionais de filosofia, o que é portanto contraditório.
Para ser levado a sério como filósofo é preciso ser formado em filosofia, mas os cursos de filosofia não estão voltados para formar filósofos e sim leitores de filosofia. Logo, se alguém se torna filósofo no Brasil, não é por causa da Universidade, mas apesar dela. Os cursos de filosofia estão estruturados para tratar de sua disciplina como uma especialização acadêmica qualquer. Os textos dos filósofos clássicos são tratados como letra morta, completamente descolados da realidade de seus autores. E da nossa.
Não temos na realidade cursos de filosofia e sim de escoliástica (não confundir com a filosofia escolástica). Escoliástica é o método de se tratar dos escólios. Escólios são problemas laterais que se destacam do corpo de um texto, comumente tratados em notas de rodapé. Adquire-se nesses cursos universitários de filosofia a habilidade de redigir notas de rodapé. Notas à tradução, comentários editoriais, remissões ao grego e ao latim. Filigranas e preciosismos. Na falta de conteúdo, debate-se a forma.
A mesma moléstia da especialização acadêmica que periodicamente esteriliza algumas ciências viceja também na “filosofia universitária” (título de um livro do “outsider” Schopenhauer, bastante elucidativo a esse respeito). Na Geologia, alguns cientistas constroem suas carreiras em cima do conhecimento sobre a camada geológica x, y ou z. Na Química, faz-se carreira em cima da molécula x, y ou z. E na filosofia universitária, seguindo o mesmo modelo, faz-se carreira em cima do parágrafo x, y ou z de Leibniz, Tomás de Aquino ou Aristóteles.
Se alguém se arrisca a falar sobre x, y ou z, em qualquer meio acadêmico, precisa enfrentar uma oposição sistemática, de tipo dogmático e eclesiástico. Trata-se de uma corporação defendendo seu privilégio. De uma casta defendendo seu latifúndio. Segundo Boris Fausto, professor emérito da USP, “Hoje, com um ou dois anos de curso, os alunos já escolheram o seu autor e, às vezes, a obra específica de que se ocuparão. Em alguns anos, serão grandes especialistas, ignorantes, ou quase, em tudo o que não se referir ao seu objeto, inclusive no âmbito da filosofia” (citado em Folha de São Paulo, 23/01/2004, Especial USP pp 12)
O problema não é a especialização técnica em si. Não se trata de ser anti-acadêmico, apenas pelo anti-academicismo. Não estamos combatendo a idéia de que o trabalho acadêmico deve se pautar pelo rigor na manipulação das fontes teóricas. As notas de rodapé fazem parte de qualquer trabalho. Não estamos defendendo um ensaísmo eclético e diletante. A questão é de conteúdo, não de método.
Em primeiro lugar, a filosofia não deveria se pautar pelos critérios da Universidade. Sob nosso ponto de vista, a filosofia é um corpo estranho na Universidade. A filosofia não tem que se submeter aos critérios de cientificidade das demais ciências. A filosofia não é uma “ciência dos textos” filosóficos. É algo além disso. É a filosofia, ao contrário, quem deve constantemente questionar e reformular os critérios de cientificidade das demais ciências. É um contra-senso um programa de “iniciação científica” em filosofia. Deveria haver sim uma “iniciação filosófica”.
Essa submissão da filosofia aos padrões da academia é um traço inescapável de desvirtuamento. A filosofia é parte da Universidade, a qual é um dos “aparelhos ideológicos do Estado”. A expressão é suficientemente enfática para precisar a idéia de que não se pode aceitar a subordinação fundamental da filosofia ao aparato do Estado burguês. No quadro dessa subordinação fundamental, a filosofia só pode respirar como atividade de guerrilha e de resistência.
Há guerrilheiros dentro e fora do sistema. Não se pode ocultar o fato de que o departamento de filosofia da USP não é um monobloco. Ele pode ser tudo, menos monolítico. Há todos os tipos de posições políticas dentro do Departamento. Aquilo que chamamos de “alheamento” do departamento em relação à realidade nacional, a recusa em problematizar o Brasil como “objeto filosófico”; defeitos que tão duramente criticamos nas partes anteriores, pode ser creditado a esse fato.
A crítica à inapetência do departamento formulada nas partes anteriores é dura, reconhecemos. Mas adota-se ali a perspectiva de quem observa a Universidade de fora. De dentro do curso, a questão aparece de forma mais concreta. A linha de trabalho historicamente adotada no departamento é uma decorrência de suas divisões internas e ao mesmo tempo um antídoto a elas. Ninguém pode se opor à idéia de um determinado padrão de qualidade do trabalho acadêmico. Ele se torna uma bandeira neutra, aceitável tanto à esquerda como à direita. A especialização técnica em leitura estrutural é o mínimo denominador comum que pode unir o departamento de filosofia.
Na USP, como em qualquer Universidade, há pois os que vivem para a filosofia e os que vivem da filosofia. Desse fato ressalta a conveniência de que este texto somente seja publicado depois que o nome do autor deixar de constar na lista de chamada dos alunos do curso. Esta providência visa não só evitar a perseguição por parte daqueles que se situam no lado negro da força, mas também separar duas ordens distintas de trabalho.
É mister proteger ambas as partes de qualquer risco de promiscuidade ideológica. Pretende-se distinguir aqui o pensamento do autor do pensamento uspiano. Essa distinção é necessária pelo fato de que este escriba não se considera um representante típico do pensamento uspiano, um exemplar da “escola uspiana de filosofia”, se é que tal coisa existe.
A responsabilidade deste especial “70 anos de USP” não pode ser imputada ao curso de filosofia, nem para o bem nem para o mal. Tanto os eventuais méritos quanto os inevitáveis defeitos deste especial são de responsabilidade estritamente pessoal. Esta forma de abordagem é a única maneira de tratar de um determinado assunto, permanecendo de fora dele, mesmo quando se está dentro, na medida em que tal pretensão é viável. O que resta ainda aqui é determinar a relação possível entre a formação adquirida no curso de filosofia e o trabalho desenvolvido no Duplipensar.
Determinar a natureza desta relação é uma decorrência da concepção de Universidade aqui apresentada. Na parte 2 está enunciada a definição de que o sistema da USP tem funcionado como uma doação pública para o sucesso particular. Na medida em que desfruta da condição de “estudante da USP”, portanto um indivíduo que se beneficia desta doação pública para alcançar sua audiência, este escriba deve algum tipo de satisfação. Este especial “70 anos de USP” funciona subjetivamente como uma espécie de prestação de contas.
Sendo ou não equivocada, existe a percepção de que, por se tratar de algo que vem da USP, esse “algo” por si só merece ser levado em conta. Alguém pode considerar que o fato de algum artigo ser escrito por um “filósofo da USP” respalda este artigo com algum tipo de “argumento de autoridade” de tipo escolástico. Pretende-se aqui desmistificar essa idéia. Este escriba se recusa a reter para si os hipotéticos benefícios que uma formação uspiana podem lhe carrear. Essa recusa se manifesta por meio da tentativa de partilhar com os leitores da internet aquilo que lhe granjeia a Universidade em termos de formação. A formação ali obtida pertence à sociedade, uma vez que foi obtida com seu dinheiro.
Esta tentativa porém é desesperadamente esquizofrênica, pois o conteúdo adquirido no curso de filosofia da USP é um conteúdo que se recusa a ser partilhado. É um não-conteúdo. Um conjunto de técnicas e métodos escoliásticos. Não há conteúdo a socializar, pois o que se aprende na USP é tão somente um método.
Ainda que o nome do autor não esteja mais na lista de chamada da USP, este escriba não se furta ao dever de apresentar aqui a questão que o move no interior do curso. Essa questão será apresentada sob forma de um esboço de uma tese, no apêndice deste especial. Essa tese dificilmente poderá ser apresentada à instituição acadêmica pelos canais apropriados, pelo fato de que uma tal tese teria remotíssimas chances de ser acatada como objeto de pesquisa acadêmica. Do ponto de vista da academia, a tese que é apresentada no apêndice deste comentário deve aparecer como um desafio, senão como um insulto.
Mas é aí que está a graça.
Daniel M. Delfino
05/06/2004
A plena realização da razão só é possível no ócio. O homem, para ser feliz, no sentido de ser plenamente homem, ou seja, plenamente racional, precisa do ócio. O homem só poderá ser feliz quando dispuser de ócio para desenvolver sua razão. O homem plenamente realizado, neste caso, é o próprio Aristóteles, que na qualidade de filósofo, pode desenvolver plenamente suas capacidades intelectuais. Ele pode fazê-lo porque dispõe de ócio para isso. Ele dispõe de ócio porque, na qualidade de homem livre, não precisa trabalhar para sobreviver. Sua sobrevivência está assegurada pelo trabalho dos escravos.
Ora, não vem a ser esse o caso deste escriba, bem como da maior parte dos leitores. Ao mesmo tempo em que tentamos desenvolver nossas capacidades intelectuais, tentamos também sobreviver. Para sobreviver, conforme já foi exposto em textos anteriores, este escriba trabalha como bancário, no bairro onde mora, o qual dista da USP em cerca de trinta quilômetros. Nessas circunstâncias, a questão do tempo disponível para dedicar-se à razão adquire dramática importância. Trabalhando 8 horas por dia (todo bancário faz horas extras, embora não receba por elas) e enfrentando 2 horas de trânsito na ida e mais 1 na volta, não dá para ser feliz.
Não obstante, tentamos contrariar Aristóteles. Mas tentamo-lo apenas na prática, evidentemente, pois na teoria Aristóteles é incontestável. Diante do que se produz contemporaneamente em filosofia, no Brasil e no mundo, é muito mais produtivo reler Aristóteles do que qualquer autor da moda. A esse respeito, remetemos ao apêndice que acompanha este especial. No apêndice, tematizamos as razões histórico-sociais pelas quais a filosofia se transforma na caricatura pela qual o senso comum a reconhece: pura especulação, pura abstração, pura retórica, palavreado inútil.
A filosofia se profissionaliza e se torna uma profissão acadêmica especulativa e taxidérmica, pois seu objeto lhe é roubado no momento em que se estabelece a concorrência das Ciências Humanas. As quais são especializações acadêmicas vazias. A filosofia dentro da universidade se torna um discurso auto-referenciado dedicado a reproduzir a si mesmo. A Universidade é o túmulo da filosofia. Em outros debates, apregoou-se a morte da arte, a morte da literatura, a morte do sujeito, até mesmo o fim da História. Assinala-se aqui a morte da filosofia.
O paralelo com a literatura é ilustrativo a esse respeito. Ninguém precisa cursar uma faculdade de letras para se tornar escritor. Um escritor se forma sozinho, fundamentalmente por meio de sua intuição, de sua sensibilidade, sua capacidade de articular vivências e percepções particulares dos problemas éticos em tipos estéticos significativos. Uma tal capacidade evidentemente se completa por meio do cultivo de um gosto estético particular e de uma erudição consistente com esse gosto, meios pelos quais se refina o talento para escrever. Um curso universitário de Letras pode ajudar nesse sentido, mas não é condição necessária nem determinante.
O mesmo não se dá porém com a filosofia, especialmente no Brasil. Não existe neste país o filósofo fora da Universidade. Quem se auto-proclama filósofo sem contar com um diploma universitário a lhe dar respaldo é automaticamente desconsiderado. Ademais, ninguém tem o interesse de se proclamar filósofo, uma vez que tal condição não é exigida num debate público. No Brasil, o escritor desempenha o papel de intelectual público que caberia ao filósofo. O romancista, o cronista, o poeta, o ensaísta, multiplicam suas intervenções na imprensa, na televisão, onde quer que seja, falando sobre política, sobre futebol, sobre cinema, sobre arte, sobre ética, etc. No Brasil, lugar de filósofo é mesmo a Universidade.
Não estamos aqui menosprezando o papel de alguns dos filósofos acadêmicos brasileiros que efetivamente intervém no debate público, apenas assinalando que tais personalidades são exceções à regra. Indo adiante na comparação com a literatura, percebemos que para ser escritor não é preciso ser formado em letras, mas para ser filósofo é preciso ser formado em filosofia. Coerentemente, os cursos de letras não formam escritores ou estudiosos de literatura, mas professores de língua e de literatura, o que não está errado. Mas os cursos de filosofia não formam filósofos e sim leitores profissionais de filosofia, o que é portanto contraditório.
Para ser levado a sério como filósofo é preciso ser formado em filosofia, mas os cursos de filosofia não estão voltados para formar filósofos e sim leitores de filosofia. Logo, se alguém se torna filósofo no Brasil, não é por causa da Universidade, mas apesar dela. Os cursos de filosofia estão estruturados para tratar de sua disciplina como uma especialização acadêmica qualquer. Os textos dos filósofos clássicos são tratados como letra morta, completamente descolados da realidade de seus autores. E da nossa.
Não temos na realidade cursos de filosofia e sim de escoliástica (não confundir com a filosofia escolástica). Escoliástica é o método de se tratar dos escólios. Escólios são problemas laterais que se destacam do corpo de um texto, comumente tratados em notas de rodapé. Adquire-se nesses cursos universitários de filosofia a habilidade de redigir notas de rodapé. Notas à tradução, comentários editoriais, remissões ao grego e ao latim. Filigranas e preciosismos. Na falta de conteúdo, debate-se a forma.
A mesma moléstia da especialização acadêmica que periodicamente esteriliza algumas ciências viceja também na “filosofia universitária” (título de um livro do “outsider” Schopenhauer, bastante elucidativo a esse respeito). Na Geologia, alguns cientistas constroem suas carreiras em cima do conhecimento sobre a camada geológica x, y ou z. Na Química, faz-se carreira em cima da molécula x, y ou z. E na filosofia universitária, seguindo o mesmo modelo, faz-se carreira em cima do parágrafo x, y ou z de Leibniz, Tomás de Aquino ou Aristóteles.
Se alguém se arrisca a falar sobre x, y ou z, em qualquer meio acadêmico, precisa enfrentar uma oposição sistemática, de tipo dogmático e eclesiástico. Trata-se de uma corporação defendendo seu privilégio. De uma casta defendendo seu latifúndio. Segundo Boris Fausto, professor emérito da USP, “Hoje, com um ou dois anos de curso, os alunos já escolheram o seu autor e, às vezes, a obra específica de que se ocuparão. Em alguns anos, serão grandes especialistas, ignorantes, ou quase, em tudo o que não se referir ao seu objeto, inclusive no âmbito da filosofia” (citado em Folha de São Paulo, 23/01/2004, Especial USP pp 12)
O problema não é a especialização técnica em si. Não se trata de ser anti-acadêmico, apenas pelo anti-academicismo. Não estamos combatendo a idéia de que o trabalho acadêmico deve se pautar pelo rigor na manipulação das fontes teóricas. As notas de rodapé fazem parte de qualquer trabalho. Não estamos defendendo um ensaísmo eclético e diletante. A questão é de conteúdo, não de método.
Em primeiro lugar, a filosofia não deveria se pautar pelos critérios da Universidade. Sob nosso ponto de vista, a filosofia é um corpo estranho na Universidade. A filosofia não tem que se submeter aos critérios de cientificidade das demais ciências. A filosofia não é uma “ciência dos textos” filosóficos. É algo além disso. É a filosofia, ao contrário, quem deve constantemente questionar e reformular os critérios de cientificidade das demais ciências. É um contra-senso um programa de “iniciação científica” em filosofia. Deveria haver sim uma “iniciação filosófica”.
Essa submissão da filosofia aos padrões da academia é um traço inescapável de desvirtuamento. A filosofia é parte da Universidade, a qual é um dos “aparelhos ideológicos do Estado”. A expressão é suficientemente enfática para precisar a idéia de que não se pode aceitar a subordinação fundamental da filosofia ao aparato do Estado burguês. No quadro dessa subordinação fundamental, a filosofia só pode respirar como atividade de guerrilha e de resistência.
Há guerrilheiros dentro e fora do sistema. Não se pode ocultar o fato de que o departamento de filosofia da USP não é um monobloco. Ele pode ser tudo, menos monolítico. Há todos os tipos de posições políticas dentro do Departamento. Aquilo que chamamos de “alheamento” do departamento em relação à realidade nacional, a recusa em problematizar o Brasil como “objeto filosófico”; defeitos que tão duramente criticamos nas partes anteriores, pode ser creditado a esse fato.
A crítica à inapetência do departamento formulada nas partes anteriores é dura, reconhecemos. Mas adota-se ali a perspectiva de quem observa a Universidade de fora. De dentro do curso, a questão aparece de forma mais concreta. A linha de trabalho historicamente adotada no departamento é uma decorrência de suas divisões internas e ao mesmo tempo um antídoto a elas. Ninguém pode se opor à idéia de um determinado padrão de qualidade do trabalho acadêmico. Ele se torna uma bandeira neutra, aceitável tanto à esquerda como à direita. A especialização técnica em leitura estrutural é o mínimo denominador comum que pode unir o departamento de filosofia.
Na USP, como em qualquer Universidade, há pois os que vivem para a filosofia e os que vivem da filosofia. Desse fato ressalta a conveniência de que este texto somente seja publicado depois que o nome do autor deixar de constar na lista de chamada dos alunos do curso. Esta providência visa não só evitar a perseguição por parte daqueles que se situam no lado negro da força, mas também separar duas ordens distintas de trabalho.
É mister proteger ambas as partes de qualquer risco de promiscuidade ideológica. Pretende-se distinguir aqui o pensamento do autor do pensamento uspiano. Essa distinção é necessária pelo fato de que este escriba não se considera um representante típico do pensamento uspiano, um exemplar da “escola uspiana de filosofia”, se é que tal coisa existe.
A responsabilidade deste especial “70 anos de USP” não pode ser imputada ao curso de filosofia, nem para o bem nem para o mal. Tanto os eventuais méritos quanto os inevitáveis defeitos deste especial são de responsabilidade estritamente pessoal. Esta forma de abordagem é a única maneira de tratar de um determinado assunto, permanecendo de fora dele, mesmo quando se está dentro, na medida em que tal pretensão é viável. O que resta ainda aqui é determinar a relação possível entre a formação adquirida no curso de filosofia e o trabalho desenvolvido no Duplipensar.
Determinar a natureza desta relação é uma decorrência da concepção de Universidade aqui apresentada. Na parte 2 está enunciada a definição de que o sistema da USP tem funcionado como uma doação pública para o sucesso particular. Na medida em que desfruta da condição de “estudante da USP”, portanto um indivíduo que se beneficia desta doação pública para alcançar sua audiência, este escriba deve algum tipo de satisfação. Este especial “70 anos de USP” funciona subjetivamente como uma espécie de prestação de contas.
Sendo ou não equivocada, existe a percepção de que, por se tratar de algo que vem da USP, esse “algo” por si só merece ser levado em conta. Alguém pode considerar que o fato de algum artigo ser escrito por um “filósofo da USP” respalda este artigo com algum tipo de “argumento de autoridade” de tipo escolástico. Pretende-se aqui desmistificar essa idéia. Este escriba se recusa a reter para si os hipotéticos benefícios que uma formação uspiana podem lhe carrear. Essa recusa se manifesta por meio da tentativa de partilhar com os leitores da internet aquilo que lhe granjeia a Universidade em termos de formação. A formação ali obtida pertence à sociedade, uma vez que foi obtida com seu dinheiro.
Esta tentativa porém é desesperadamente esquizofrênica, pois o conteúdo adquirido no curso de filosofia da USP é um conteúdo que se recusa a ser partilhado. É um não-conteúdo. Um conjunto de técnicas e métodos escoliásticos. Não há conteúdo a socializar, pois o que se aprende na USP é tão somente um método.
Ainda que o nome do autor não esteja mais na lista de chamada da USP, este escriba não se furta ao dever de apresentar aqui a questão que o move no interior do curso. Essa questão será apresentada sob forma de um esboço de uma tese, no apêndice deste especial. Essa tese dificilmente poderá ser apresentada à instituição acadêmica pelos canais apropriados, pelo fato de que uma tal tese teria remotíssimas chances de ser acatada como objeto de pesquisa acadêmica. Do ponto de vista da academia, a tese que é apresentada no apêndice deste comentário deve aparecer como um desafio, senão como um insulto.
Mas é aí que está a graça.
Daniel M. Delfino
05/06/2004
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