3.5.07

70 anos da USP – Parte 6




APÊNDICE

“Os filósofos até hoje tem se limitado a interpretar o mundo, e o fazem de diversas maneiras. Mas o que realmente importa é transformá-lo.”

Karl Marx, “Teses sobre Feuerbach”, 11a. e última Tese

À primeira vista, essa afirmação pode ser entendida como uma simples bravata voluntarista. Algo no sentido de que a filosofia não é mais necessária e o mundo pode ser transformado sem seu concurso, por meio de ações práticas puras, orientadas por simples palavras de ordem, ou por sabe-se lá o quê. Nessa interpretação imediatista, a verdade já é conhecida e já se sabe tudo o que é preciso. Os filósofos que persistem com suas elucubrações especulativas estão perdendo seu tempo e o nosso.

Essa abordagem imediatista da tese torna-a facilmente compreensível para o ponto de vista, bastante disseminado, de que a filosofia é um estorvo inútil, assim como são socialmente inúteis todos aqueles indivíduos que se dedicam a aprimorar as qualidades do espírito, tais como os filósofos. Em resumo, pode ser lida como um manifesto antiintelectualista.

Essa interpretação não corresponde porém ao espírito da tese de Marx, ainda que seja peculiar ao modo de pensar de muitos militantes ditos “marxistas”. A idéia contida nessa tese é a de que a própria filosofia, para se desenvolver, precisa estar sintonizada com as exigências da transformação social. Não se trata de dizer que a filosofia deve ser “engajada” e “colaborar” com a transformação do mundo. Não se trata de clamar por uma colaboração de tipo exterior, lateral e paralela às ações materiais de transformação. Trata-se da enunciação de uma exigência interna ao próprio desenvolvimento intrínseco da filosofia. A filosofia, para desenvolver-se enquanto tal, enquanto filosofia, doravante precisa estar articulada com as necessidades da transformação social.

O pressuposto dessa tese é de que a filosofia, em sua forma especulativa, já havia alcançado o seu máximo desenvolvimento, através de Hegel. Daí por diante, a filosofia só poderia avançar tornando-se prática. Partindo da visão do próprio Hegel, que havia recolhido as conquistas da filosofia clássica alemã, mas ao mesmo tempo superando-o, Marx demonstra como a filosofia especulativa hegeliana refletia o mundo sob a forma invertida de falsa consciência.

O sistema hegeliano é então considerado por Marx como o ponto máximo de desenvolvimento da filosofia dentro de uma determinada ordem social e histórica, que é a ordem capitalista própria da sociedade burguesa. A filosofia que não questiona e ultrapassa os pressupostos da sociedade burguesa está condenada a permanecer aquém das conquistas alcançadas por Hegel. Sintomaticamente, filósofos anti-marxistas regrediram aquém de Hegel e renunciaram sucessivamente à dialética, à história, à totalidade, ao sujeito e até à própria razão. Transformam portanto a filosofia no avesso de si mesma.

O sentido dessa tese pode ser melhor compreendido por meio de uma comparação histórica. Quando Galileu Galilei compareceu perante as autoridades da Igreja sob acusação de heresia, o que estava em jogo não era uma simples questão de astronomia. Determinar se a Terra gira em torno do sol ou vice-versa não era uma questão ociosa, como pode parecer hoje, do nosso ponto de vista inevitavelmente anacrônico. Não se tratava de uma questão politicamente inocente, tal como é hoje a questão de saber quantos planetas existem fora do sistema solar.

Determinar qual astro gira em torno de qual era uma questão da mais alta importância política, pois toda a estrutura social se baseava no poder de uma organização cujo domínio sobre a sociedade dependia de seu monopólio do conhecimento cosmológico: a Igreja. Fazer uma afirmação sobre cosmologia que contrariasse um dogma da Igreja equivalia a fazer uma provocação política. Lançar uma tese de astronomia significava enfrentar uma oposição de tipo social, não meramente acadêmica. A luta enfrentada por Galileu não era apenas científica, mas histórico-social. A ciência havia se transformado numa questão política. Fazer pesquisa científica significava naquele momento enfrentar os interesse materiais estabelecidos de toda uma classe social: o clero.

O mesmo raciocínio está implicado na tese supracitada. Fazer filosofia significava, a partir de Marx, enfrentar os interesses estabelecidos da classe burguesa. Para nós hoje, quase 400 anos depois do julgamento de Galileu, a questão de saber se a Terra gira em torno do sol ou o contrário parece incapaz de suscitar paixões políticas e inquéritos das autoridades. Daqui há alguns séculos, do mesmo modo, a batalha enfrentada por Marx a partir da afirmação de que uma sociedade baseada na competição (predação) e na exploração do homem pelo homem não pode ser melhor do que uma outra baseada na cooperação racional e responsável, parecerá também uma questão bárbara e sem sentido.

Assim como no tempo de Galileu era necessário romper as amarras do dogma religioso, no tempo de Marx era preciso denunciar as armadilhas do interesse de classe. Deixar de questionar a ordem social significava abrir mão do projeto de compreender a realidade humana. Depois da monumental síntese realizada por Hegel, o conhecimento do mundo só tinha uma direção para onde avançar: a crítica da realidade histórico-social. Seria preciso questionar as categorias fundamentais da sociedade burguesa: capital, Estado, trabalho assalariado, burguesia e proletariado. Tal foi precisamente o projeto encetado por Marx ao longo de sua acidentada e inconclusa obra.

Ao tempo de Marx, as ciências da natureza já não enfrentavam mais obstáculos do tipo dos que estorvaram Galileu. Um homem como Darwin podia fazer as afirmações que fez em “A origem das espécies” sem correr risco de vida significativo. Conquanto o mundo continuasse majoritariamente preso à supertição e ao fanatismo, a perseguição institucional não mais existia. A ciência havia se tornado ela própria uma ferramenta do capital, assim como a religião era um sustentáculo da ordem político-social. Manter as duas em eterna antítese é uma operação administrativa corriqueira inerente e necessária ao funcionamento da ideologia burguesa.

O mesmo não se pode dizer das ciências sociais e históricas. Um projeto como o de Marx de se colocar em atitude crítica em relação às categorias da sociedade burguesa tinha que ser fortemente combatido pelos defensores ideológicos do sistema do capital. Apontar as contradições desse sistema significa combater os interesses das classes dominantes burguesas, na sua qualidade de personificações funcionais do capital. Tal como na época de Galileu, a ciência esbarra nos interesse de classe. Pois a ciência chega ao ponto de poder questionar a própria existência das classes, pregando sua dissolução.

Galileu não era filósofo e Marx não era cientista. Mas essas categorias não eram então, nas épocas de ambos, o mesmo que são hoje. A filosofia é o esforço de articulação racional do conjunto de saberes de uma determinada realidade histórico-social. Ao tempo de Galileu, a forma do Universo era um problema filosófico fundamental. Ao tempo de Marx, o próprio entendimento do homem como um ser histórico-social era o problema que esbarrava nos interesses estabelecidos. Uma Ciência da História, como disciplina totalizadora do conhecimento sobre o universo humano, passa a ser uma ameaça para o capital.

Urgia então, do ponto de vista dos defensores do sistema, obstar o desenvolvimento dessa Ciência da História. Para enfrentá-la, uma diversificada tropa de choque foi mobilizada. Além dos praticantes profissionais e acadêmicos de uma filosofia regressiva pré-hegeliana, que até hoje giram em torno dos mesmos problemas, reiteradamente repostos, sem conseguir fazê-los avançar, como um cão que tenta morder seu próprio rabo; surgiu toda uma nova fauna de “cientistas sociais”, dedicados a fragmentar o conhecimento da realidade histórico-social, impedindo assim a sua compreensão totalizadora e subdividindo-se numa série de especializações acadêmicas inevitavelmente parciais e inerentemente estéreis: História, Geografia, Economia, Ciência Política, Antropologia, Teoria Literária, Psicologia, e a mais absurda e vazia de todas, a Sociologia.

É esse pois o estado em que nos encontramos na filosofia e nas ciências humanas. Herdamos um imenso manancial de conhecimentos que permanecem condenados à esterilidade por força de sua desarticulação. Pois a disciplina que deveria articulá-los, que é precisamente a filosofia, foi emasculada ao divorciar-se da prática. A prática, por sua vez, como assinalamos acima, tornou-se hostil à teoria. Os militantes “marxistas” são sempre os primeiros a recusar a avaliação crítica de seus pressupostos teóricos. O que se constitui numa questão acessória interessante para a tese que defendemos. Se os filósofos se limitaram a interpretar o mundo, sem poder transformá-lo, é evidente que para transformá-lo, é preciso também interpretá-lo.

A tese que se apresenta aqui é uma leitura da 11a. Tese sobre Feuerbach de Marx. A leitura que defendemos estabelece que esta tese constitui um problema de tipo filosófico, mais do que simplesmente político-programático. Evidentemente, determinar a pertinência filosófica de uma afirmação como essa envolve assumir a interpretação de que a filosofia que recusa-se a tornar-se parte da prática recusa-se também simultaneamente a desenvolver a si própria enquanto filosofia.

A defesa dessa interpretação envolve o estudo da marxologia tradicional, donde emergirá o contexto em que a 11a. Tese foi formulada. Envolve também o estudo da forma como as questões que levaram a essa Tese se colocam no mundo de hoje. Qual é a relação entre a filosofia e o mundo hoje? As determinações materiais e ideológicas articulam-se sempre de maneira mutável, num quadro complexo de inter-relações cujo caráter flutuante tende a obscurecer os nexos categoriais da realidade estudada. O mundo de Marx era um; nosso mundo é outro. Não obstante, a questão permanece em aberto. Sempre há algo que muda e algo que permanece o mesmo.

“E no entanto, ela (a Terra) se move” Galileu Galilei

Daniel M. Delfino

04/06/2004

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