3.5.07

O jogo, o bingo, o PT e os bichos




Finalmente está completo o perfil burguês do governo Lula. O escândalo de corrupção, a cereja do bolo que faltava, acaba de ser acrescentado. O primeiro escândalo de corrupção a gente nunca esquece.

No número 82 da revista Caros Amigos, o escritor Guilherme Scalzilli enumerou, entre os desastres do primeiro ano de Fernando Henrique Cardoso, o longínquo 1995, alguns dos escândalos de corrupção que vieram embaraçar o tucanato:

“Os escândalos proliferaram. Parlamentares condenados pelo uso ilegal da gráfica do Senado foram anistiados. José Dallari, Secretário de Acompanhamento Econômico, retirou-se sob acusações de vazar informações para clientes de sua consultoria. Henrique Hargreaves deixou a presidência da ECT por receber dinheiro do Sebrae. Grampo telefônico, provavelmente ordenado por José Graziano (Incra), flagrou o chefe do cerimonial do Planalto, Júlio César dos Santos, arquitetando a escolha da empresa que forneceria os equipamentos do projeto Sivam. O ministro da Aeronáutica, Mauro Gandra, citado nas conversas, pediu demissão. Divulgou-se o conteúdo da ‘pasta rosa’, pertencente ao Banco Econômico, com listas de políticos beneficiados por doações ilegais, envolvendo ACM, José Sarney e Delfim Netto. Sob pressão do PFL, o governo abafou o caso e o procurador-geral, Geraldo Brindeiro, arquivou-o.”

O governo Lula precisou de um ano e dois meses para produzir seu primeiro escândalo. Se isso serve de consolo para alguém, a lama talvez não chegue a ser tão profunda e malcheirosa como era na década de FHC, como acabamos de relembrar. Talvez tenhamos apenas um caso ou outro pipocando de vez em quando, não a avalanche da época do tucanato. A imagem de vestal do PT e de Lula talvez nem seja arranhada junto à população.

Se alguém deseja se conformar com essa esperança, não é o caso deste escriba. Se não bastassem todos os equívocos políticos, a campanha eleitoral festiva e despolitizadora, as alianças comprometedoras, a composição conciliadora do governo, as concessões à direita, a política econômica anti-nacional e anti-popular, a subserviência ao capital financeiro internacional, as contra-reformas anti-sociais, o estrangulamento da área social; se não bastasse tudo isso, os eleitores petistas agora também terão que se dar ao trabalho de rechaçar acusações de corrupção.

Este comentário se destina a tão somente constatar o fato assinalado acima: o governo do PT se caracteriza como um governo burguês. Não é um governo burguês como qualquer outro, pois carrega a característica especialíssima de ter sido eleito com as esperanças do setor oposto da sociedade, ou seja, o trabalho. Até porque o partido carrega o trabalho no próprio nome. Exatamente por isso, a diluição do caráter de classe do governo petista em um governo burguês provoca e deve provocar escândalo, celeuma, frustração e indignação.

O que caracteriza o governo burguês, na sua versão da democracia representativa, é a alienação da política. A política deixa de pertencer a quem a ela interessa, ou seja, à população e passa a pertencer a “representantes” eleitos. Esses representantes são os profissionais da política, os eternos donos do poder, manipuladores dos segredos da política. Geralmente, são também donos do poder econômico, empresários, banqueiros, latifundiários, donos de TVs e jornais, funcionários públicos de carreira, representantes classistas e patronais.

Usualmente, os donos do poder administram, legislam e julgam em causa própria. A classe política como um todo, abstraída a sua divisão em partidos, trabalha para fazer do Estado o instrumento de seus interesses particulares. Cada setor trata de tentar manipular a economia, a justiça, a polícia, o que quer que seja, para proteger suas fortunas e suas operações particulares de predação do patrimônio público. Concretamente, esse jogo se dá através da disputa entre os partidos políticos.

A cada nova eleição, cada legislatura que toma posse, seguem-se os ajustes por meio dos quais o butim do Estado é repartido entre as gangues de políticos. De vez em quando, para justificar sua nomenclatura de “representantes” do povo, denunciam-se as falcatruas da gestão anterior. Seguem-se CPIs, que são operações por meio das quais os escândalos são abafados. Por meio das CPIs e outras investigações manipuladas, sacramenta-se a partilha entre as gangues: “você rouba o seu aí que eu roubo o meu aqui”. Entre as providências de praxe, costuma-se jogar algum peixe pequeno, algum juiz Lalau da vida, para execração pública. Apenas para que os peixes grandes continuem sua rapinagem.

Normalmente, a corrupção endêmica é apresentada como uma “falha de caráter” atávica do brasileiro. Como se todos fôssemos “corruptos por natureza” e o poder apenas aumentasse o tamanho do apetite. Esquece-se com isso que a corrupção está na essência do poder burguês. O Estado burguês é expressamente mercenário. Basta examinar Estados mais desenvolvidos e eficientes que o brasileiro. Nos Estados Unidos, quem quer um Presidente da República só precisa financiar sua campanha eleitoral. O consórcio petroleiro-armamentista financiou Bush e teve a mercadoria pela qual pagou: a guerra pela conquista do Iraque cevou o complexo industrial militar e garantiu a fartura anti-ecológica de combustíveis fósseis poluentes.

A apresentação da corrupção em termos de falha de caráter pessoal só serve para a manutenção da política como monopólio das gangues partidárias. Por meio dessa forma demagógica de apresentação, cada gangue partidária pode fazer o marketing de ser mais honesta que a outra. Caçar marajás é uma das estratégias mais comuns. Ou, como isso não cola mais, fazer a caveira do inimigo quando está na oposição. E tentar se proteger como puder quando está no governo.

O escândalo de corrupção a que nos referimos, é óbvio, diz respeito ao caso Waldomiro Diniz, o ex-assessor de José Dirceu, a eminência parda do governo Lula. Aparentemente (pois isto ainda é um Estado de direito e ninguém é culpado até que se prove o contrário), Diniz recebia doações ilegais para campanhas eleitorais do PT. Doações vindas de dinheiro dos bingos, que por sua vez reciclam dinheiro da contravenção (jogo do bicho) e de outras fontes ilegais.

Uma vez vazado o escândalo, seguem-se as manobras. Inexperiente no jogo pesado da política, o PT age de forma açodada. Waldomiro é afastado. Os bingos são proibidos. Traz-se à baila a discussão da reforma das regras formais da política: financiamento público de campanhas, fidelidade partidária, listas partidárias, etc. Tudo para proporcionar uma cortina de fumaça e fazer de conta que sim, este é um governo sério, que “não vai tolerar a corrupção”.

Dessa forma, o jogo continua. O PT acaba de ser convidado para o baile. Em troca da manutenção da cabeça de Dirceu, os caciques no poder há 500 anos vão pedir vista grossa para as suas mamatas e falcatruas. Dirceu, o homem da negociação política, agora vai ter que negociar a própria sobrevivência política. Ou concede o que os caciques desejam, ou será obrigado a ver mais sujeira no ventilador. O PT está na defensiva. Ironicamente, o governo Lula se vê forçado a compulsar os mesmos argumentos que FHC usava quando o PT era oposição: essas acusações não passam de uma “manobra política” para “desestabilizar o governo”.

Preocupados e zelosos, os mandatários petistas apontam para os indicadores econômicos: denúncias de corrupção prejudicam a credibilidade do país perante o mercado. O mercado fica nervoso com essa agitação. O dólar sobe, o risco-país sobe, as bolsas caem. É hora de ser “responsável” e preservar a “estabilidade” duramente conquistada.

E assim, melancolicamente, vemos a política se transformar num melancólico exercício de agradar os mercados. A corrupção deixa de ser um crime contra o povo, que é na verdade quem financia o Estado, e passa a ser uma ameaça à tranqüilidade do mercado. Ou seja, uma perturbação na operação de predação do país pelo capital especulativo, do qual a classe política é sócia minoritária. A inversão de perspectivas é flagrante.

Quando se aceitam os pressupostos da política burguesa, que são a alienação do povo, a instrumentalização do Estado pelo poder econômico e a rendição ao mercado, a corrupção não é um efeito colateral indesejado, mas uma conseqüência natural. A passagem da teoria burguesa da política para a prática da corrupção não é acidental, como o caso do PT acaba de ilustrar.

A aceitação das regras da política burguesa começa com a negação da luta de classes e a aceitação de alianças com a direita. Depois, aceitam-se como “interlocutores junto à sociedade” elementos de passado obscuro como esse Waldomiro Diniz. É justo perguntar que serviços esse cidadão teria prestado ao PT ou à causa dos trabalhadores. Mas essa pergunta nunca é feita. Considera-se normal que a política seja feita por burocratas de gabinete. Homens que consideram normal aceitar contribuições de campanha dos mafiosos da jogatina em troca da legalização dos bingos. Que fazem da política um balcão de negócios vulgar. Não que as credenciais de militante signifiquem lá grande coisa, uma vez que o próprio Dirceu foi guerrilheiro treinado em Cuba...

Escândalos de corrupção, como se vê, são um tema boçal e enfadonho, que não rende considerações profundas nem raciocínios elegantes. Como diria o Che Que-Vara do filme dos cassetas, “ainda hay que endurecer!”.

Daniel M. Delfino

28/02/2004

Nenhum comentário: